Consumo e afeto na experiência de sócios-torcedores

Em minha pesquisa de pós-doutorado, que desenvolvi como bolsista de PDJ do CNPq junto ao PPCIS/UERJ em 2023, abordei as experiências de sócios-torcedores de Flamengo e Fluminense e sua atuação como consumidores de produtos do clube de sua preferência. Meu objetivo era compreender a importância conferida por eles próprios à adesão aos programas de sócios-torcedores e ao consumo de produtos como uma forma de expressão de seu afeto por seu “clube do coração”.

Os programas de sócios-torcedores foram criados como uma nova fonte de arrecadação pelos clubes brasileiros, de modo a contribuir para a reestruturação de suas finanças, possibilitando o pagamento de dívidas e a realização de novos investimentos de modo sustentável. Trata-se de uma estratégia de marketing que visa à fidelização dos torcedores como consumidores, gerando, assim, novas receitas. 

Concebidos sob a lógica do mercado, esses programas operam mediante a oferta de vantagens e benefícios aos associados em troca do pagamento de mensalidades ou anuidades, sendo maiores as vantagens, quanto mais caros os planos contratados. Nesse sentido, ao lado da arenização dos estádios, eles contribuiriam para o processo de comoditização do futebol, bem como para a elitização e domesticação dos torcedores, concebendo-os como “meros consumidores”, em detrimento da dimensão simbólica e afetiva que caracterizam o pertencimento clubístico no Brasil (Bocchi, 2016; Giulianotti, 2012; Santos, 2017; Toledo, 2012).

Segundo Damo (2002), a relação dos torcedores com seus “clubes do coração” se daria na forma de um engajamento emocional, envolvendo sentimentos de amor, paixão e fidelidade, em virtude do ethos romântico que lhe serve de base. A comoditização do futebol e o tratamento dos torcedores como consumidores poriam em xeque o primado das emoções nesse universo, tendo em vista a oposição estipulada entre emoção e mercado na modernidade ocidental, tributária da rígida separação entre os domínios público e privado nesse contexto (Zelizer, 2009). 

Em que pese o dualismo “emoção x mercado” que fundamenta a condenação moral da comoditização do futebol no campo das humanidades, encontramos, em pesquisa realizada anteriormente (Rios, 2018), resultados que contrariam essa perspectiva. Investigando as impressões de torcedores do Flamengo sobre o Novo Maracanã, deparamo-nos com discursos que apontavam para a conjugação entre emoção (dádiva) e mercado (consumo) em suas experiências como sócios-torcedores. A adesão ao programa Nação Rubro-Negra foi apontada pelos entrevistados como uma forma de ajudar o clube em seu processo de recuperação financeira, sendo representada, portanto, como um exemplo de sacrifício e abnegação, uma manifestação de seu amor incondicional pelo Flamengo.   

No pós-doutorado, buscamos aprofundar a reflexão iniciada na tese, abordando as experiências de sócios-torcedores como objeto central da nova investigação. Visando à construção de uma visão mais nuançada sobre o tema, contamos com o aporte dos estudos sobre consumo, que se somaram às referências teóricas sobre emoção e esporte articuladas em trabalhos anteriores. Além disso, ampliamos o escopo das entrevistas, incluindo sócios-torcedores de Flamengo (Nação) e Fluminense (Sócio Futebol), o que nos possibilitou realizar algumas comparações. Seguem abaixo alguns dos principais resultados encontrados. 

 

Site do sócio-torcedor do Flamengo.

No que diz respeito ao afeto pelo clube, os entrevistados mencionaram sentimentos de amor, paixão e fidelidade, caracterizando a identidade clubística como uma tradição familiar que se encontra na base da construção de laços afetivos. Além disso, mencionaram a realização de loucuras e sacrifícios como provas de amor, destacando-se os esforços para a compra de ingressos e o comparecimento regular ao estádio, além da realização de viagens para acompanhar o clube em partidas “fora de casa”. Nesse sentido, os benefícios relativos à compra de ingressos (descontos, prioridade etc.) foram os mais valorizados pelos entrevistados como razão para aderir aos programas de sócios-torcedores, especialmente por possibilitar a presença em jogos de maior apelo, como clássicos e decisões, além da garantia de um lugar no setor de sua preferência. 

Em que pese a importância desses benefícios, a principal motivação apontada por alguns entrevistados para a adesão aos programas de sócios-torcedores foi a possibilidade de ajudar o clube financeiramente, contribuindo pessoalmente para sua recuperação financeira e para o aumento de sua competitividade – o que se mostrou ainda mais relevante durante a pandemia de COVID-19. A adesão ao programa seria, portanto, uma ato de abnegação e uma nova forma de apoio, para além daquele prestado nas arquibancadas. No caso dos torcedores do Fluminense, a associação permite uma participação política efetiva através do direito a voto nas eleições do clube, sendo este um diferencial do programa tricolor no futebol carioca – e é justamente a ausência desta prerrogativa um dos aspectos mais criticados do programa rubro-negro.

Site do sócio-torcedor do Fluminense.

Para além das facilidades ligadas à compra de ingressos, os entrevistados mencionaram os descontos oferecidos na aquisição de produtos do clube como uma das principais vantagens usufruídas por eles enquanto sócios-torcedores. Embora descartem o bom desempenho das equipes como um fator relevante para a decisão de tornarem-se ou manterem-se como associados, eles entendem que este aspecto influencia seus hábitos de consumo, pois ficam mais “empolgados” e racionalizam menos seus gastos quando o time se encontra em boa fase. Além disso, a própria adesão aos programas tende a elevar seu nível de consumo, em virtude dos descontos oferecidos e da sensação de maior engajamento proporcionada pela associação. 

Os principais critérios utilizados para a compra de produtos do clube incluem fatores financeiros, estéticos e simbólicos. Assim, embora alguns entrevistados tenham o hábito de comprar pelo menos as camisas de jogo de cada temporada tão logo são lançadas (preço cheio), a maioria espera por descontos, priorizando a compra de camisas consideradas bonitas ou que tenham alguma importância simbólica, tais como modelos utilizados nas campanhas de títulos importantes, ou que remetam a conquistas do passado. Nesse sentido, embora prefiram a compra de produtos licenciados (seja por sua qualidade superior, seja para ajudar o clube), alguns recorrem a réplicas de modelos antigos por conta do simbolismo mencionado. Também é comum dar e receber produtos do clube de presente nas trocas com familiares e amigos em datas festivas, celebrando-se assim a importância da identidade clubística como base para a construção e reforço de laços afetivos.

Como possuem muitos produtos do clube, os entrevistados procuram armazená-los em gavetas ou compartimentos específicos, dedicando cuidados especiais para sua preservação. Assim, algumas camisas são lavadas a mão pelos próprios torcedores, em separado das outras roupas, empregando-se técnicas e produtos que evitem sua danificação. Além disso, existe uma hierarquização quanto aos contextos de uso: camisas mais velhas ou desgastadas são utilizadas no dia a dia, em atividades esportivas ou de lazer, enquanto camisas mais novas e preservadas podem ser utilizadas até mesmo em festas e passeios. Alguns disseram ter camisas preferidas para utilizar quando vão ao estádio, as quais podem converter-se em “camisas da sorte” ao acumularem uma boa sequência de vitórias. A partir de então, passam a ser utilizadas somente em jogos importantes, evitando-se que esta sorte acumulada seja desperdiçada, o que consiste numa estratégia de gestão do “mana” impregnado nestes objetos sagrados. 

As camisas preferidas dos entrevistados geralmente remetem a conquistas importantes dos clubes ou a memórias afetivas envolvendo laços familiares e de amizade. Alguns desses itens são retirados de circulação ou são utilizados somente em ocasiões especiais, tais como as “camisas da sorte”. Além disso, existem camisas que embora estejam desgastadas e/ou não sirvam mais, são guardadas pelo simbolismo que carregam – e mesmo quando não se observa tal simbolismo, o simples descarte de uma camisa velha do clube é impensável: ou ela permanece guardada, sem previsão de uso, ou é repassada a outros torcedores.

De modo semelhante ao observado acerca da adesão aos programas de sócios-torcedores, a compra e utilização de produtos foi apontada pelos entrevistados como uma expressão de seu amor pelo clube, rejeitando-se, porém, qualquer tipo de hierarquização afetiva com base nesta modalidade de consumo, dado seu caráter socialmente excludente. Em sua maioria, os entrevistados afirmam que os gastos envolvendo a assinatura do programa, bem como a compra de ingressos e produtos do clube, não chegam a representar riscos às suas finanças, apesar dos grandes volumes despendidos em alguns casos. Isso porque tais custos já estão contemplados em seu planejamento financeiro, como uma despesa rotineira, tendo em vista a perenidade de sua relação com o clube, que consiste em algo contínuo e faz parte de seu cotidiano.

Os resultados alcançados neste projeto nos permitem reforçar conclusões de pesquisas anteriores, especialmente no que diz respeito aos discursos dos entrevistados sobre a dimensão afetiva de sua relação com o clube de sua preferência, bem como sobre suas motivações para aderirem aos programas de sócios-torcedores. Como vimos, a adesão é justificada por garantir a presença dos torcedores nos estádios para apoiar o clube, apresentando-se também como um novo tipo de ajuda, de ordem financeira, caracterizada pelos torcedores como uma nova forma de sacrifício que se faz por amor ao clube, promovendo-se uma combinação entre dádiva e consumo – o que também se observa nos discursos sobre a compra de produtos licenciados.

Referências

BOCCHI, Gabriel Monteiro. Do estádio do Pacaembu para a Arena Corinthians: Etnografia de um processo de “atualização”. 2016. 237 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flaneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol. Record: Revista de História do Esporte, V.5, n.1, p.1-35, jun. 2012.

RIOS, Fábio Daniel. Os torcedores e o Novo Maracanã: emoção e espaço nas arenas esportivas contemporâneas. 2018. 276f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

SANTOS, Irlan Simões. Clientes versus Rebeldes: Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2017.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Políticas da corporalidade: socialidade torcedora entre 1990-2010. In: HOLLANDA, Bernardo et al. A torcida brasileira. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2012.

ZELIZER, Viviane. Dualidades perigosas. Mana, vol. 15, n. 1, abril de 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/HSJdWkcT6w5CPjR8mDMCgpb/?lang=pt

Deixe uma resposta