DAMINHAS DA BOLA: a formação de atletas e a construção de pessoas em categorias de base do futebol de mulheres

Introdução

Em junho de 2027 o Brasil será sede, pela primeira vez, de uma Copa do Mundo feminina. Evidentemente, este é um marco importante na história brasileira desta modalidade que começou a ser obrigatória nos clubes do país há pouco mais de 6 anos. Na Oolimpíada de Paris 2024, a seleção de futebol feminino brasileiro foi vice-campeã da competição. Isso gerou grande repercussão na mídia, com mais de 71,7 milhões de pessoas assistindo a esta final na TV Globo que teve a maior audiência da história do canal desta modalidade. Apesar disso, não ocorreu um aumento de investimento em categorias de base para meninas em clubes. Isto seria essencial para formar as novas gerações de futebolísticas para que seja possível chegar ao topo mais alto do pódio pela primeira vez em uma Copa, como foi visto que é factível no ano passado. 

Os clubes brasileiros em sua maioria possuem atualmente o sub-20, no máximo, o sub-18 de categoria de base para mulheres. A categoria sub-18 pode ter atletas a partir de 14 anos seguindo as regras da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Então, entre 6 e 13 anos, as meninas não possuem um espaço específico para elas em clubes. No Rio de Janeiro, nessa faixa etária, só existe uma menina que está em um dos quatro grandes clubes do Rio de Janeiro, em uma categoria de base de meninos: esta é a Alice Duarte, de 9 anos, e atua pelo Fluminense no sub-10, tanto no campo quanto no futsal. A realidade de Alice é muito diferente de outras meninas que praticam o futebol e eu me questionei: onde a juventude está treinando para se tornarem futuros jogadores profissionais de futebol?

Mais do que isso, como é a formação de um atleta de futebol que praticamente não passa por uma categoria de base formal em clubes? Como esperar que esse jogador chegue na transição da base para o profissional? Como as meninas aprenderam a lidar com os erros, derrotas, com a pressão, cobranças e criar maturidade emocional sem um espaço que acompanhe seu desenvolvimento cognitivo, técnico, tático e de força de uma mulher? 

Este artigo propõe, então, uma reflexão sobre como é a formação de um atleta e, consequentemente, a construção dela como pessoa em alternativas às ausências de categorias de base formais no futebol de mulheres brasileiras. Partindo do pressuposto de que “o processo de formação de um atleta não pode e não é possível ser dissociado da formação dela como uma pessoa” como Joice, coordenadora do projeto social esportivo em que eu pesquiso, argumenta. Neste sentido, busca entender como uma criança aprende o que ela é ensinada, como se forma uma menina atleta. A hipótese é que o atleta seja agente ativo de sua aprendizagem e não seja um receptor passivo de informações. A criança desenvolveu sua formação mesmo que os adultos sejam aqueles que orientam este processo durante muito tempo e, além disso, as crianças que vivenciam infâncias com o propósito de chegar ao profissional de uma modalidade sejam diferentes das crianças que não almejam ser atletas no futuro por conta de uma carga exaustiva de treino e limitações alimentares e de hobbies. 

 

O Daminhas da Bola

Um espaço para futebol de campo exclusivo para meninas nas categorias de base entre sub-9 e sub-13, que é uma fase em que os clubes ainda não abriram espaços exclusivos, só foi encontrado no projeto social esportivo chamado Daminhas da Bola (Daminhas). Este projeto existe desde 2011, foi criado por Thaissan Passos, atual treinadora do futebol feminino do Grêmio. Então, uma das alternativas à ausência de uma categoria de base em clubes exclusivos para meninas no Rio de Janeiro é o projeto social esportivo Daminhas da Bola. Ele fica localizado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Tem treinos às segundas e quartas, das 15h às 17h, exclusivamente para meninas entre 7 e 15 anos. Existem 4 técnicos, que se dividem entre as categorias sub-9, sub-11, sub-13 e sub-15, uma coordenadora, um financeiro e uma pessoa que cuida das redes sociais, todos eles são voluntários e não recebem para participar do projeto. As crianças precisam pagar 110 reais por mês para possuir um plano de saúde e ajudar com o custo do aluguel do campo. 

Fonte: Projeto Daminhas da Bola

Como é a formação de um atleta e de uma mulher em um projeto social?

Não é possível afirmar que para os interlocutores desta pesquisa exista uma unanimidade em relação às Daminhas da Bola seja uma categoria de base ou um projeto social esportivo. Isso porque existe uma divisão nítida: enquanto quem trabalha lá, seja como coordenadora, técnico ou social media o categoriza como projeto social, as mães, os pais e as atletas o classificam como categoria de base. Essa divergência de termos nativos é curiosa, pois um projeto social e uma categoria de base possuem objetivos, critérios e propostas diferentes. Então, como é possível que as pessoas envolvidas na mesma iniciativa representem as Daminhas da Bola de formas diferentes?

As crianças oportunizadas pelas Daminhas da Bola, desde que chegam no projeto, aprendem por meio da observação, a partir do exemplo das outras atletas, com a repetição constante e os feedbacks dos professores. A explicação de uma atividade é realizada de acordo com qual categoria está sendo orientada. Por exemplo, eu estava acompanhando a explicação de uma atividade que iria trabalhar a coordenação motora (atividade coordenativa) dos atletas do sub-9. Neste caso, a descrição foi feita da seguinte forma por um dos professores do projeto: “você mata a barata com um pé só e depois a barata foi para o outro lado e você precisa continuar a matar a barata com um pé só, mas do outro lado, deu para entender?” (Renan, Rio de Janeiro, 19 de fev. de 2024).

Joice, coordenadora do Daminhas afirmou no documentário “Das minas” que:

O que a gente costuma explicar para elas e passa para as famílias delas é que a gente entende esse sonho de ser jogadora profissional, mas elas vêm para o projeto social, esse não é nosso objetivo principal: formar elas como atletas. Nosso objetivo principal é trazer elas para o projeto para que elas vivam a modalidade, mas que possamos contribuir na formação delas como mulheres, como mulheres de bem (Joice, treinadora e coordenadora).

Guedes, Davies e Novaes (2006) tratam sobre a questão de projetos sociais esportivos de forma semelhante ao que a comissão técnica do Daminhas da Bola objetiva com o projeto. Os autores argumentam que projetos sociais esportivos, normalmente, destinam-se a realizar uma intervenção físico-moral em crianças e jovens das camadas populares, utilizando o esporte como estratégia pedagógica e disciplinadora com atividades extensivas ou complementares à escolarização formal. Além disso, são importantes para transmitir valores morais e pensamentos específicos que os agentes do projeto acreditam ser importantes para a construção de uma pessoa. A argumentação dos autores se assemelha a de Joice quando ela afirma que quer “contribuir na formação delas enquanto mulheres, como mulheres de bem”. Além disso, Milena, treinadora do Daminhas, explica no documentário que:

Nosso papel, enquanto educadora, é formar cabeças pensantes, é formar mulheres para a sociedade, o que as escolas públicas não fazem. Do futebol, o que ela vai ser mais para frente é toda uma construção do que a gente vem colocando como papel principal, ela se entende enquanto pessoa e sabe o seu valor. (Milena, treinadora).

Ademais, Milena levanta a questão de que, para ela, as escolas públicas no Brasil não são de qualidade e que o Daminhas poderia influenciar em um pilar que a educação pública não chega, seja através dos ensinamentos do projeto ou por meio da aquisição de bolsas de estudo em escolas particulares. Milena explicou para mim que “O Daminhas não tem convênio com nenhuma escola particular, mas temos uma boa relação com o Elite e Cerus, então indicamos volta e meia uma menina para receber bolsa” (Milena, Rio de Janeiro, 19 de fev. de 2024).

Isso parece entrar de acordo com a argumentação proposta por Guedes, Davies e Novaes (2006) que afirma que se ocupa o tempo livre das crianças de camadas populares em projetos sociais que reproduzem padrões tradicionais de educação, mas que são, muitas vezes, mira de críticas. Nesse sentido, evidencia-se que o problema não estaria em uma educação formal e sim em como a educação formal é passado para as crianças. Por conseguinte, Guedes, Davies e Novaes alegam que existe uma:

Valorização difusa da educação, explicitada em vários discursos como a única forma possível para superar as enormes desigualdades sociais na sociedade brasileira, associada a uma visão de uma escola pública universal de pouca qualidade, também muito difundida, e à ausência de políticas públicas específicas ligadas aos esportes, desenvolver o terreno – e, diríamos, a necessidade – para a abordagem dos projetos sociais esportivos (Guedes; Davies e Novaes, 2006, p.12).

Já para os familiares das crianças oportunizadas pelo projeto o pensamento é diferente. Eles não representam as Daminhas como um projeto social esportivo e sim como uma categoria de base do futebol feminino. Como é possível perceber na fala da mãe da Carolina, de 9 anos, exibida no mesmo documentário:

Minha filha mudou bastante, ela sempre quis ser goleira, mas só que eu só encontrava espaços que eram mistos, então eu não deixei ela ser goleira junto com os meninos, mas ela já fazia futebol. Ela foi convidada para vir para cá, uma categoria de base feminina, aí eu trouxe (Mãe da Carolina, 9 anos).

 E na fala também da atleta Alice de 8 anos:

Aqui é a única categoria de base para a minha idade que eu conheço só para meninas (Alice, 8 anos)

Como podemos perceber, a Alice e a mãe da Carolina representam as Daminhas da Bola como uma categoria de base. E o que seria uma categoria de base? É o espaço que crianças e jovens entre 6 e 20 anos têm para se desenvolver na modalidade que almejam ser profissionais. É o espaço onde podem nascer novos talentos, que são específicos e aprimorados. É uma porta de entrada para novos atletas, destinada ao treinamento de futuros jogadores. As categorias de base são localizadas em clubes e são divididas por faixas etárias. Então, o Daminhas da Bola, para os interlocutores desta pesquisa, é como se fosse um clube. Apesar de ter prioridades diferentes em relação ao objetivo do projeto, pode ser o espaço que fará com que as meninas sejam jogadoras de futebol no futuro.

O fato de não existirem categorias de base para meninas entre 6 e 14 anos em clubes do Rio de Janeiro, faz com que os familiares e atletas categorizem as Daminhas como categoria de base, por uma carência na sociedade brasileira de abarcar nestes espaços meninas. Portanto, os atletas e familiares oportunizados pelo projeto enxergam desta forma, por não ter um espaço formal que desempenhe este papel.

O Daminhas segundo a coordenadora do projeto é:

“Um espaço que além de formar atletas, forma mulheres. É impossível dissociar a formação de um atleta da sua formação com pessoa. As meninas sabem a realidade do projeto, elas sabem dar valor às coisas porque sabem como está difícil continuar sem financiamento e quem realmente não tem como pagar nada, não paga. O objetivo maior é sempre ajudar” (Joice, Rio de Janeiro, 19 de jan. 2024).

A formação dessas meninas como pessoa e como atleta passa por esses ensinamentos, porque muitas meninas do projeto não possuem condições financeiras, mas através do esporte conquistam várias oportunidades. Um exemplo é Sophia de 12 anos, ela ganhou uma bolsa para estudar no Elite e me explicou: “agora eu posso lançar no recreio e fazer várias brincadeiras, porque antes da minha turma tinha 6 pessoas e agora tem 48 e, por isso, fiz novos amigos e agora jogo futebol pela escola.” (Sophia, Rio de Janeiro, 10 de fev. de 2024). Pode-se perceber que elas aprendem e vivenciam coisas que vão além das “quatro linhas” por conta do esporte.

Meninas do projeto Daminhas da Bola – Créditos: Jornal O Extra

Além disso, todas as categorias sempre possuem uma conversa, uma roda no final de cada treino, em que os técnicos perguntam o que as crianças achariam do treino, o que podem melhorar em cada atividade, se elas sentirem mais dificuldades em algum exercício e se elas desejarem repetir algum no próximo treino. Os técnicos falam que sempre existe um diálogo entre eles e os atletas. Tive a oportunidade de participar de diversas dessas rodas e as crianças falam: “a gente não deu passe direito no 3 contra 3”; “foi o mais legal, mas precisa melhorar um pouquinho”; “o nosso chute está muito fraco”; “a gente precisa se comunicar”.

Sempre que eu tento perguntar sobre alguma fantasia que existe no Daminhas da Bola como: “por que vocês molham a chuteira com água gelada? Ou “por que vocês sempre se cumprimentam com um aperto de mão e falam com todos os outros atletas?” Na maioria das vezes, a resposta é a mesma: “eu aprendi com elas”; “Eu aprendi quando entrei aqui”; “Aprendi e não foi com as mais velhas, aprendi com a minha categoria das que entraram antes de mim”;

 

Considerações finais

O senso comum olha para crianças como seres em construção, seres inacabados. Mas e se pensarmos que na verdade nós nos transformamos a cada etapa da nossa vida? As crianças oportunizadas pelo projeto social Daminhas da Bola se transformam a cada ano que permanecem no projeto. São protagonistas nesta transformação tanto quanto os profissionais que estão envolvidos nos treinos e jogos. São pessoas com opiniões que querem ser ouvidas e levadas a sério, pois levam muito a sério e, constantemente, é possível ouvir algum atleta falar: “o Daminhas é muita coisa, é a minha vida”. Então, interlocução com crianças é entender que elas são capazes de nos ensinar.

O fato de existir uma dualidade na representação do Daminhas da Bola, enquanto projeto social esportivo e uma categoria de base de meninas, tem relação direta com a realidade que essas crianças estão inseridas: no Rio de Janeiro ainda não existe espaço nos clubes para meninas entre 6 e 14 anos. Porém, o que se vê olhando para o lado são meninos que desde o sub-7 já praticam o futebol de campo nos clubes cariocas. Então, representar as Daminhas como uma categoria de base é por conta de uma carência desses espaços para as meninas que, hoje em dia, já se inspiraram em mulheres jogadoras de futebol e buscam, desde cedo, o sonho de alcançar o alto rendimento esportivo. 

Por fim, a aprendizagem que é esperada através do projeto social esportivo Daminhas da Bola é diversa, dependendo de quem está se perguntando. Mas é unânime que alguns valores morais são aclamados por todos os interlocutores da pesquisa como a disciplina, a alimentação regrada, a confiança e que as melhores noites de sono são alcançadas ao fazer parte deste projeto. Formar crianças é uma tarefa difícil que a comissão técnica busca sempre aprimorada para que essas meninas tenham a educação que as treinadoras queriam ter tido, tanto na vida quanto no futebol.

 

Referências bibliográficas

GUEDES, Simoni Lahud; DAVIES, Júlio D’Angelo e NOVAES, Roberta Brandão. Projetos Sociais Esportivos e as Novas Trajetórias dos Atletas Profissionais. 30º Encontro Anual da ANPOCS, 2006.

MILTERSTEINER, Yuri. Documentário das Minas. 2023 (5) Documentário Das Minas – YouTube

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