Após o título da Libertadores de 2024, as jogadoras do Corinthians publicaram, em suas redes sociais, um vídeo com críticas à organização do campeonato. O material, que conto com boa parte do elenco do clube, anunciou:
“Ganhamos, mas nem tudo é festa. Mudança de sede da última hora, falta de divulgação, campos em ruínas, risco de lesões, apenas 20 atletas inscritos, jogos de três em três dias, estádios vazios, proibidos aquecidos no campo de jogo, estruturas precárias. Isso é uma falta de respeito. Inadmissível! Não só com o Corinthians, mas com todos os atletas, todos os clubes, todos os países. Queremos respeito para crescermos juntas”.
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O protesto, que inclui questões estruturais e de visibilidade, traz à tona uma discussão mais ampla que é, ao mesmo tempo, atual e histórica, tendo em vista que representa reivindicações de longos dados que se mantêm urgentes nos dias de hoje.
Entre as pautas elevadas ao longo do tempo estão a organização de campeonatos e de um calendário para os clubes, segurança nas relações de trabalho, profissionalização e normas de treinamento e jogo.
Organização, estrutura e segurança trabalhista
Olhando para a história da modalidade no Brasil, embora os impedimentos impostos à prática tenham caído em 1979 e a regulamentação tenha acontecido em 1983, assim como a participação em grandes competições com a seleção, como Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, o Campeonato Brasileiro Feminino foi criado pela CBF em 2013, ganhando uma segunda divisão em 2017 e uma terceira em 2022. Nas categorias de base, o sub-18 e o sub-16 tiveram suas primeiras edições em 2019.
Em 2019, o relatório da FIFA Women’s football – Member Associations Survey Report revelou que 15 mil mulheres jogavam um futebol organizado no Brasil. Para uma base de comparação, nos Estados Unidos, esse número chegou a 9,5 milhões. Na América Latina, há índices variados, mas o Brasil se encontra entre os mais baixos. Em termos percentuais, colocando o número de jogadores com relação à população total estimada pelo relatório, temos, em ordem decrescente: Estados Unidos com 2,95%; Uruguai com 0,18%; Venezuela com 0,078%; Argentina com 0,064%; Peru com 0,054%; Chile com 0,050%; Colômbia com 0,026%; e Brasil com 0,0072%. O número de atletas adultos registrados em território nacional era de 2.974. Com menos de 18 anos, apenas 475. Nos Estados Unidos, eram 80 mil adultos e mais de um milhão e meio de jovens.
Em 2023, o relatório que [1] fornece as informações mais atualizadas teve os parâmetros alterados. A Fifa divulgou os dados da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) ao detalhar o caso de cada país. Logo, os únicos números que tratam exclusivamente do Brasil revelam que são 2.997 mulheres com mais de 20 anos registradas, e 3.354 entre as mais jovens.
Dessa maneira, a prática amadora se mostra uma realidade no país. Martins, Delarmelina e Souza (2024) destacam que uma situação se tornou ainda mais complexa com a sobreposição da Lei Geral do Esporte, que permite vínculos profissionais sem a assinatura da carteira de trabalho, criando um cenário de ambiguidades legais e econômicas que afetam particularmente o futebol feminino.
Avanços recentes com relação à modalidade aconteceram com a resolução da Conmebol, que colocou como exigência de seu estatuto e regulamento de clubes, publicado em 2016, a manutenção de um tempo feminino. Diante dessa determinação, somente aqueles que se adequassem poderiam participar da Libertadores da América e da Copa Sul-Americana a partir de 2019. Tal medida foi acompanhada pelo Licenciamento de Clubes da Confederação Brasileira de Futebol, no qual a CBF foi distribuída como garantia à existência de equipes femininas adultas e de base para os clubes da série A do Campeonato Brasileiro de 2019 em diante.
Ambas as medidas estão em conformidade com o Estatuto da Fifa de 2018, que, em seu vigésimo terceiro artigo, coloca como dever das confederações a inclusão de princípios de governança com disposições relativas, entre outros temas, à igualdade de gênero. Almeida (2019) observa que a CBF deu sinais de mudanças em relação ao cumprimento das regras da Federação, mas, na hora de colocá-las em prática, demonstrou que a intenção era preencher as formalidades impostas pela instituição internacional. Assim, são muitos os casos de projetos improvisados ??para “cumprir tabela”.
Em 2019, após uma derrota por 9 a 0 diante do Santos no jogo válido pela série A1 do Campeonato Brasileiro, Sofia Sena, do Sport, ao ser questionada pelo repórter da CBFTV sobre o que faltou para sua equipe fazer um gol, desabafou: “ Vou dizer a você o que faltou. Elas são superiores a nós […], treinam todos os dias, e a gente mal tem horário para treinar três vezes por semana, e mesmo assim uma quantidade muito pouca. Elas convivem mais com a bola, e a gente mal toca na bola. O que falta mesmo para o Sport é foco do clube em nós, que é uma dificuldade tremenda para isso acontecer, não tem prioridade para o feminino. É ‘se vira do jeito que pode’ […] E isso não ganha jogo. A gente pode ter raça, pode ter vontade, pode ter amor, mas, com certeza, isso não vai ganhar jogo” (Sena, 2019).

Duas semanas após a declaração, Sofia foi dispensada do Sport (Castro, 2019). E o clube também esteve sob os holofotes de denúncias com uma reportagem da Folha de S.Paulo (Valadares, 2019), cujo conteúdo evidenciava que “os contratos profissionais do período de 2018 foram todos desfeitos, e o departamento de futebol feminino, encerrado. As 20 atletas, todas com carteira assinada, precisaram sair do alojamento”. Diante da possibilidade de o time masculino ser punido pela CBF, o Sport “recorreu às categorias de base do Ipojuca, um time amador do Grande Recife, para montar o elenco. O improviso é tamanho que a zagueira Janaina Barros teve que começar a jogar como goleira”, conta a matéria.
Outra reportagem, dessa vez do blog Dibradoras (Mendonça, 2019, s/p), episódios que retrataram exemplos dessa falta de estrutura e organização: atletas do Santos tiveram que “dormir na recepção de um hotel porque uma empresa de logística contratada pela CBF para o campeonato não havia reservados os quartos para a data certa”; horários precisaram viagens dias inteiros sem intervalos para as refeições; Os jogos do Brasileiro sub-18 foram adiados por falta de luz no estádio. Além disso, existem casos como o do Atlético Paranaense, que decidiu encerrar as atividades da equipe feminina de futebol após o rebaixamento do time masculino no Brasileirão de 2024 – já que a manutenção do projeto não era mais obrigatória.
Em 2020, no cenário da pandemia de Covid-19, as dificuldades da modalidade também tiveram evidências. A Federação Internacional de Jogadores de Futebol (FIFPro) divulgou o relatório Covid-19: Implicações para o futebol feminino profissional (Covid-19: Implicações para o futebol feminino profissional, em tradução livre para o português), no qual afirma que a falta de contratos por escrito, os vínculos de trabalho de curto prazo, a insuficiência de seguro de saúde e de assistência médica, bem como a ausência de medidas de proteção básica dos direitos trabalhistas são fatores que colocam muitas mulheres em uma situação de alto risco por terem suas meio de sustentação ameaçados. O documento indica que, apesar de muitas preocupações terem sido relacionadas por atletas, algumas delas foram mais frequentes: as questões que estão em aberto sobre economia, calendário de competições e segurança no emprego. Martins, Delarmelina e Souza (2024) também apontam que pesquisas recentes, além do levantamento da FIFPro (Sindicato Mundial dos/as Jogadores/as de Futebol), destacam as condições precárias de trabalho, a ausência de garantias legais sólidas, como o direito à maternidade e à não discriminação salarial no local de trabalho.
Nacionalmente, essa insegurança ficou evidente nos episódios denunciados pelas reportagens do portal Ge.globo: “Das ameaças aos atletas à verba da CBF retida: pandemia escanda o amadorismo do futebol feminino” (Canhedo e Oliveira, 2020a) e “Pandemia afeta elite do futebol feminino” , mas a maioria dos clubes mantém mudanças; veja panorama” (Canhedo e Oliveira, 2020b), conforme baseado em Araújo (2023). Com a paralisação de todos os campeonatos de futebol, conforme especificações da CBF de ações de apoio financeiro aos clubes. Mas, de acordo com o material, a confederação não tem contrapartidas e nem define a forma como os valores deveriam ser usados, e a maioria dos dirigentes não repassou as palavras para os atletas, fazendo com que muitos fiquem sem regras. Assim, quando reivindicaram seus pagamentos e expuseram os casos, os jogadores foram dispensados, enquanto outros foram ameaçados.
As autoras analisam que a falta de investimento estrutural perpetua a desigualdade de recursos entre homens e mulheres, reforçando a marginalização das jogadoras – o que, no caso brasileiro, se acentua nos estados onde o futebol é economicamente menos desenvolvido. Para os pesquisadores, essa situação revela como as estruturas econômicas e institucionais, que são específicas do domínio estrutural do poder, continuam a determinar o acesso a recursos e oportunidades de maneira desigual, conforme indicam Collins e Bilge (2020). Nesse sentido, concluímos que a análise dessas condições evidencia que, mesmo com as novas políticas, as práticas de desigualdade se perpetuam por meio da resistência econômica dos clubes e da falta de incentivo real ao desenvolvimento do futebol feminino. Assim, embora diversos avanços sejam comemorados, é possível destacar que as dificuldades estruturais são um reflexo das disparidades de gênero que marcam o esporte.
Referências
ALMEIDA, Caroline Soares. O Estatuto da FIFA de igualdade de gênero no futebol: histórias e contextos do Futebol Feminino no Brasil. FuLiA , Belo Horizonte, v. 1, edição especial –Dossiê Futebol e Mulheres, p. 72-87, 2019.
ARAÚJO, Érika Alfaro. JORNALISMO ESPORTIVO E FUTEBOL FEMININO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19. Revista Latino-americana de Jornalismo – ÂNCORA , v. 1, 2023. Disponível em https://periodicos.ufpb.br/index.php/ancora/article/view/65720/37474. Acesso em 16 dez. 2024.
CANHEDO, Ana e OLIVEIRA, Maurício. As ameaças aos atletas à palavra da CBF retida: a pandemia escancara o amadorismo do futebol feminino. Ge.globo , São Paulo, 14 mai. 2020a. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-feminino/noticia/das-ameacas-a-atletas-a-verba-da-cbf-retida-pandemia-escancara-amadorismo-do-futebol-feminino .ghtml. Acesso em: 16 dez. 2024.
CANHEDO, Ana e OLIVEIRA, Maurício. Pandemia afeta a elite do futebol feminino, mas a maioria dos clubes mantém variações; veja panorama. Ge.globo , São Paulo, 21 mai. 2020b. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/futebol-feminino/noticia/pandemia-afeta-elite-do-futebol-feminino-mas-maioria-dos-clubes-mantem-salarios-veja-panorama.ghtml . Acesso em: 16 dez. 2024.
CASTRO, Elton de. O Sport dispensa jogadora que reclamou da estrutura do clube e da CBF. ge.globo , [sl], 27 jun. 2019. Disponível em: https://ge.globo.com/pe/futebol/times/sport/noticia/jogadora-que-reclamou-da-estrutura-do-clube-e-da-cbf-e-dispensada-pelo -esporte.ghtml. Acesso em: 29 out. 2020
COLLINS, Patrícia Hills; BILGE, Simone. Interseccionalidade . Tradução: Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2020.
FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE ASSOCIAÇÃO DE FUTEBOL (FIFA). Futebol feminino : relatório de pesquisa das associações de membros de 2019. [S. l.]: Fifa, [2019?]. Disponível em https://img.fifa.com/image/upload/nq3ensohyxpuxovcovj0.pdf . Acesso em: 08 jan. 2025.
FIFPRO. Covid-19: Implicações para o futebol feminino profissional. [Sl]: FIFPRO , 2020. Disponível em: https://fifpro.org/media/zp3izxhc/fifpro-wf-covid19-new.pdf. Acesso em: 16 dez. 2024.
MARTINS, Mariana Zuaneti; DELARMELINA, Gabriela Borel; SOUZA, Letícia Carvalho. Relações de trabalho no futebol feminino: modernização e desafios. Revista da UFMG , Belo Horizonte, v. fluxo contínuo, 2024. DOI: 10.35699/2965-6931.2024.54309. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistadaufmg/article/view/54309. Acesso em: 6 jan. 2025.
MENDONÇA, Renata. Essa foto é de um treino de time profissional de futebol. Dá para acreditar? Dibradoras , [sl], 19 jul. 2019. Disponível em: https://dibradoras. blogosfera.uol.com.br/2019/07/19/essa-foto-e-de-um-treino-de-time-profissional-de-futebol-da-pra-acreditar/. Acesso em: 6 jan. 2025.
SENA, Sofia. [Entrevista cedida a] CBFTV, 2019 . Disponível em https://twitter. com/nielson_p
Nota de rodapé
[1] Disponível em: https://inside.fifa.com/womens-football/member-associations-survey-report-2023 . Acesso em: 08 jan 2025.