Durante minha pesquisa de doutorado sobre o futebol na década de 1960, especialmente em 1968, tornou-se recorrente encontrar a capa do Jornal dos Sports dividida entre notícias esportivas e as ações do movimento estudantil. Em uma dessas edições, o futebol e a política se cruzaram de forma simbólica: a manchete destacava a invasão da sede do Botafogo, em General Severiano, pela polícia atrás de estudantes.
Por ter um forte apelo entre os jovens[1], o JS dedicava parte de seus cadernos a temas voltados para o público que concluía o ensino médio e buscava ingressar na universidade, reservando algumas páginas exclusivamente para esses leitores. No entanto, com o endurecimento da ditadura, as notícias sobre o aumento da violência policial começaram a dominar o noticiário do Cor-de-rosa.
Mesmo antes da promulgação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, o regime já revelava sua face: os espaços de liberdade seriam mínimos. Não se enganem com a falácia da “ditabranda”[2]. Nos primeiros anos da ditadura, a sociedade brasileira já enfrentava, por exemplo, quatro Atos Institucionais; as eleições para presidente e governador tornaram-se indiretas, além da nomeação de prefeitos das capitais; foram instituídas também uma nova Lei de Segurança Nacional e uma nova Lei de Imprensa; mandatos foram cassados, e a repressão aos movimentos civis crescia exponencialmente. No entanto, foi também nesse momento que o movimento estudantil brasileiro se consolidou como um importante foco de resistência civil contra o regime ditatorial
Mais do que isso, o ano de 1968 em todo o mundo, foi marcado por movimentos de contracultura, como o Maio de 1968 na França, os protestos contra a Guerra do Vietnã nos EUA e a Primavera de Praga, entre outros. No Brasil, não foi diferente: 1968 ficou marcado pela Passeata dos Cem Mil, realizada após o assassinato do estudante Edson Luís de Lima, pela Batalha da Rua Maria Antônia, em que discentes da USP entraram em conflito com alunos da Mackenzie. E um desses eventos acabou “invadindo” o mundo do futebol.
É até conhecida a utilização de estádios como centros de detenção durante as ditaduras na América Latina, como o estádio Caio Martins em Niterói e o Estádio Nacional no Chile. No entanto, desta vez, a repressão tomou um rumo diferente: a polícia invadiu a sede de um clube. A história começa no dia 20 de junho de 1968, com uma Assembleia Geral realizada no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha, localizado no bairro de Botafogo. Os jovens planejavam marchar da Praia Vermelha até o Ministério da Educação. Segundo o JS, entretanto, a ordem dada pelas autoridades do Estado aos policiais era “impedir, de qualquer maneira, a manifestação estudantil” (Jornal dos Sports, 20 de junho de 1968, p. 12), e assim se fez.
De acordo com o periódico, uma pequena parte dos estudantes conseguiu chegar até o pátio MEC, onde havia um aparato policial já montado. Os policiais, de forma rápida, partiram em direção aos manifestantes. Um segundo grupo se aproximava pela Avenida Graça Aranha e também foi recebido com bombas e cassetetes. Ao mesmo tempo, uma passeata na Avenida Rio Branco, que clamava “abaixo a ditadura”, foi alvo de ataques com bombas de gás. As primeiras prisões começaram a ocorrer. No MEC, um estudante de 16 anos foi conduzido por um soldado. As detenções se intensificaram, acompanhadas pela crescente repressão ao movimento.
No entanto, uma fração desse grupo não conseguiu chegar ao centro. Próximo ao campus da UFRJ, na Praia Vermelha, localiza-se a sede social de General Severiano, do Botafogo de Futebol e Regatas, onde os discentes buscaram abrigo contra a ação policial. Atrás deles, os agentes do DOPS (Delegacias de Ordem Política e Social) e do SNI (Serviço Nacional de Informações) que “caçavam os estudantes” e invadiram o clube (Jornal dos Sports, 21 de julho de 1968, capa). Cerca de 200 jovens, com a autorização do presidente do Botafogo, Altemar Dutra de Castilho, conseguiram entrar e foram direcionados ao campo de futebol. Embora o dirigente tenha tentado impedir a entrada dos policiais na sede, não adiantou:
De repente o bombardeio começou. Os vidros da sede foram todos quebrados e pelas janelas os policiais iniciaram o lançamento de dezenas de bombas de gás. Conseguiram arrombar uma porta do lado do campo e invadiram-no com a proteção de novas e repetidas bombas de gás. Muitos investigadores tiraram seus revólveres e ameaçavam atirar no primeiro que se mexesse. (Jornal dos Sports, 21 de julho de 1968, p. 6)

Segundo o periódico, atletas, funcionários, sócios do clube e até mesmo crianças sofreram nas mãos da polícia:
[…] atletas do clube, que comumente frequentam a sede à noite para treinar, também receberam pancadas dos soldados e agentes do DOPS, que não respeitavam ninguém. […] o porteiro, que até então não havia deixado ninguém entrar, obedecendo ordens do presidente do Botafogo, foi levado aos bofetões e empurrões até o interior da sede. […] a cozinheira do Botafogo desmaiou, outros funcionários sofreram ferimentos ou ficaram intoxicados pelo gás, sendo socorridos no Hospital Rocha Maia, ao lado. […] o Diretor Financeiro do Botafogo, Sr. Guilherme Arino, ficou preso numa sala durante mais de uma hora e quando saiu estava com o rosto ferido e com os olhos vermelhos e inchados pelo efeito do gás lacrimogêneo. […] uma sócia do Botafogo, que jantava tranquilamente, recebeu uma bomba de gás nos pés, atirada pela janela, cujos vidros haviam sido quebrados pelos soldados da PM, e foi obrigada a deitar-se no chão. Não satisfeitos com isso, agentes do DOPS pisotearam suas costas e empurravam seu rosto contra o assoalho. […] a nuvem de gás lacrimogêneo que atingiu inclusive crianças que ensaiavam uma quadrilha para a festa de São João. Cinco delas estão hospitalizadas, vítimas do gás, do trauma nervoso e de pancadas que receberam na confusão generalizada. (Jornal dos Sports, 21 de junho de 1968, p. 6).
O cartunista Henfil, conhecido por seus desenhos com forte teor político, no dia seguinte denunciava a brutalidade dos agentes do Estado no campo do Botafogo:

Indignado com a invasão, Altemar Dutra de Castilho telefonou para Francisco Negrão de Lima, governador do estado da Guanabara, que prometeu enviar uma autoridade policial superior para conter a selvageria, mas a promessa não se cumpriu. O dirigente decidiu então contatar seu irmão, o general João Dutra de Castilho. O militar fazia parte do alto escalão do regime e, em 1969, comandou a 1ª Divisão de Infantaria da Vila Militar do Rio de Janeiro, um local que se tornaria um centro de tortura e execução (Brasil, 2014). Ao se queixar para o irmão de que “isto tem de acabar neste país” (Jornal dos Sports, 21/06/1968, p. 12), fica a dúvida sobre a que exatamente o presidente do clube se referia. O fato é que a repressão, de maneira explícita, atingiu um dos grandes clubes do país. Não é difícil imaginar o que esses estudantes enfrentaram após as prisões.
O cenário pela cidade era mais grave ainda, no dia 22 de junho o JS noticiava: “DOPS e PM mataram três: toda a cidade ficou contra a Polícia”. Ainda segundo o periódico, o balanço entre os policiais, contra os discentes foi:
Vários mortos. Dezenas de baleados. Milhares de espancados. Tiroteio no centro da cidade. Pedras e paus contra tiros e baionetas. Barricadas improvisadas na Avenida Rio Branco e outros pontos. Carros incendiados. Vaias contra a Polícia que agrediu a todos. Tiros contra as vaias. Bombas de gás lacrimogêneo, atiradas até acabar o estoque. Centenas de prisões. (Jornal dos Sports, 22 de junho de 1968, p. 11)
Diante desse evento, mais uma vez me vejo parafraseando Roberto DaMatta (1982): quanto mais estudo o futebol no Brasil, mais compreendo essa sociedade. Em dezembro daquele ano, o AI-5 seria aprovado, consolidando a formação de um Estado policial-terrorista. Há 60 anos do golpe, reafirmamos nosso compromisso de lembrar para que não se repita.
Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão da Verdade responsabiliza 377 pessoas por repressão na ditadura. 10 dez. 2014. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/447150-comissao-da-verdade-responsabiliza-377-pessoas-por-repressao-na-ditadura/. Acesso em: 02 out. 2024.
DAMATTA, Roberto. Futebol: Ópio do Povo x Drama de Justiça Social. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 1, n. 4, p. 54-60, 1982.
Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 20, 21 e 22 de junho de 1968.
Notas de Rodapé
[1]Uma pesquisa divulgada pelo próprio periódico reforça esse perfil: segundo levantamento do Ibope, cerca de 55% dos cariocas entre 15 e 30 anos liam o Jornal dos Sports (7 de janeiro de 1967, p. 5).
[2]Ver: NAPOLITANO, Marcos. O mito da “ditabranda”. In: NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.