Na cidade do Recife, há torcedores que só pensam numa coisa: SAF. São os torcedores do Santa Cruz. Eles acreditam que esta é a solução ideal para tirar o seu clube da crise. Os três últimos presidentes deram seguidas declarações públicas de que concordam com a ideia. Mas fizeram uma ressalva: o Santa Cruz não pode adotar um modelo que lhe seja prejudicial. De forma mais crua, disseram que o clube não pode ser vendido por um preço ridículo. O importante, então, é planejar com cuidado.
O impasse vem desde 2022. A torcida tem pressa. A crise é tão grande que o Santa Cruz sequer se classificou para a Série D de 2024. Sua última partida oficial foi disputada em março. Ainda assim, o presidente Bruno Rodrigues pede calma e diz que “fazer uma SAF atabalhoadamente, de qualquer forma, para dar uma satisfação, vai afundar o clube para o resto da vida“.(1)
A questão, portanto, não é se o Santa Cruz se tornará uma SAF ou não. Já está decidido que sim. A questão é quando e como.
Em outros clubes, o consenso é inteiramente oposto. No Palmeiras, a presidente Leila Pereira já disse que não se pensa em adotar o modelo de SAF. Ela não quer e, mesmo que quisesse, não conseguiria: “Para o Palmeiras se transformar em SAF, precisaria da aprovação do Conselho Deliberativo, e o Conselho não aprovaria. Então, eu não chegaria sequer a propor esse tipo de alteração“.(2)
Percebem-se opiniões bem divergentes: uns querem a SAF sem demora, outras a aceitam com cautela e devagar e há os que querem essa sigla longe dos seus clubes. Em resumo, três correntes: “SAF Já”, “SAF com cuidado” e “SAF Não”. O embate entre os três posicionamentos faz desse assunto um dos mais controversos do futebol brasileiro na atualidade.
Os que se alinham à “SAF Já” podem usar o Cuiabá como exemplo e inspiração. Um clube que chegou a estar inativo em 2007 e 2008, mas transformou-se em clube-empresa, alcançou êxitos seguidos e chegou à Série A em 2021 (o futebol de Mato Grosso estava fora da primeira divisão nacional desde 1986). Quem apostou que o Cuiabá seria rebaixado em sua primeira participação, frustrou-se. O clube passou de clube-empresa a SAF e continuou disputando a Série A nos anos de 2022, 2023 e 2024.
Foi muito tranquilo para o Cuiabá passar de clube-empresa para SAF. Parecia algo natural. No Botafogo, aconteceu de modo muito diferente. A SAF chegou com festa e animação. Foi um caso de “SAF Já” com entusiasmo ruidoso. Concluídos os acertos com a Eagle Football Holding (que ficou com 90% das ações da SAF do Botafogo), o proprietário da empresa, John Textor, viajou ao Rio de Janeiro no início de 2022. No aeroporto Santos Dumont, ele foi recebido por uma torcida eufórica que cantava alegremente. Alguns gritavam “i love you, John”. Um botafoguense chamou a atenção da imprensa por ter oferecido vinte reais a Textor. Seria para ajudar no esforço de reerguimento do clube. Um gracejo, é claro. Textor recusou.
Eu tava com esse dinheiro na minha carteira. Quando ele chegou ali, naquela euforia toda, pensei que tinha que fazer alguma coisa. Nem eu sei o que passou, queria fazer uma graça. Do nada falei com meu amigo e disse que daria meus R$ 20 pra ele. E não é qualquer R$ 20, foram R$ 20 que a minha avó me deu de Natal.(3)
Imagem 1: John Textor recebido por botafoguenses eufóricos no aeroporto Santos Dumont, em 2021. Fonte: GE
No Flamengo, o que predomina é a “SAF com cuidado”. Alguns dirigentes e membros de torcidas organizadas manifestaram rejeição à ideia da SAF, mas o presidente Landim se mostrou a favor. O Conselho Deliberativo do clube aprovou recentemente regras específicas para a implantação da SAF, sem a proibir. Ficou estabelecido, afinal, que seria necessária a aprovação de 2/3 da Assembleia Geral, com quorum mínimo de 60% dos membros. SAF no Flamengo, então, pode até ser, mas só depois de muito diálogo, negociação e convencimento. Quase todos os conselheiros concordaram que precisa ser assim mesmo. Foram 272 votos a favor da emenda, dois contra e uma abstenção.(4)
No Corinthians, não se ouve qualquer voz em defesa da SAF. É território da “SAF Não”. Em julho, uma reportagem do GE tratou do assunto:
Se tem um assunto em que diferentes correntes políticas do Corinthians concordam é sobre a SAF. A ideia de vender o clube é rejeitada tanto pelo presidente Augusto Melo quanto por Andrés Sanchez, seu principal antagonista.
Na gestão de Duílio Monteiro Alves, encerrada no fim do ano passado, o Corinthians também foi sondado por fundos árabes dispostos a adquirir o clube, mas nem sequer abriu negociações.(5)
Uma primeira impressão é a de que clubes antigos (com facções internas muito ativas e sob a pressão de torcidas grandes e apaixonadas) tendem a desconfiar ou rejeitar a SAF. O receio é que a mudança corrompa a essência do clube, quebre tradições “sagradas” e altere rotinas. Muitos flamenguistas, por exemplo, dizem que o seu clube é essencialmente um clube “do povo” e, por isso, não admitem que um milionário ou uma empresa seja “dona do clube”. Isso destruiria a imagem e identidade do Flamengo. A Gaviões da Fiel diz o mesmo em relação ao Corinthians. Já os clubes mais novos, com torcidas e dirigentes menos ativos, aceitam a SAF mais facilmente.
A situação muda quando o clube, mesmo sendo antigo e com facções internas muito mobilizadas, entra em crise severa. A enorme necessidade de receber investimentos e sanar dívidas faz com que dirigentes e torcedores passem a aceitar melhor a ideia da SAF, embora saibam o quanto isso pode afetar as tradições e os costumes do clube. Assim aconteceu com o Botafogo, Bahia e Vasco da Gama.
O caso do Cruzeiro é interessante. O clube, em crise, transformou-se em SAF no fim de 2021 e passou a estar sob o controle do ex-jogador Ronaldo Fenômeno. De início, a torcida o tratou como herói e a situação melhorou ainda mais quando o Cruzeiro voltou à Série A, em setembro de 2022. No ano seguinte, porém, começaram as críticas e protestos. Para muitos torcedores, os resultados pareciam frustrantes. No início de 2024, Ronaldo transferiu a gestão do clube para outro empresário. Neste momento, cada torcedor fez a sua análise sobre a importância do ex-jogador para a superação da crise. Alguns continuaram criticando-o e comemoraram a sua saída, mas outros interromperam suas reclamações e reconheceram, de cabeça fria, que a atuação de Ronaldo havia sido decisiva para reerguer o Cruzeiro. Algumas torcidas organizadas manifestaram publicamente sua gratidão:
Obrigado, Ronaldo! No momento que mais precisamos você surgiu e nos salvou da cova que já estava armada para nós.(6)
Imagem 2: Torcidas organizadas do Cruzeiro publicaram na internet um agradecimento a Ronaldo Fenômeno pela SAF. Fonte: Internet.
Aconteceu algo semelhante no Vasco da Gama. Em agosto de 2022 o entusiasmo era visível e os vascaínos cantavam “urubu otário, a 777 tem dinheiro pra c…”. A 777, no caso, era a 777 Partners, empresa que controlava a SAF do Vasco. Menos de um ano depois, já havia torcidas organizadas promovendo ações de protestos contra a mesma 777. A empresa entrou em crise, foi denunciada judicialmente nos Estados Unidos e acabou afastada da gestão da SAF, sendo substituída por uma empresa seguradora que passou a gerir o patrimônio da 777 Partners. O interessante é que este afastamento da 777 foi seguido por dois êxitos importantes: o Vasco da Gama superou o Atlético Goianiense, o Athletico Paranaense e chegou à semifinal da Copa do Brasil, amenizando a crise da SAF e provocando uma nova onda de ânimo entre os torcedores. Pedrinho, o presidente do Vasco, declarou que o problema estava na 777 Partners, não na SAF. O modelo, então, continua. E haverá um novo acionista majoritário.
Como se vê, o que não falta em torno das SAFs é opinião e controvérsia. Ela é a salvação hoje, a vilã amanhã, a solução necessária depois de amanhã. A discussão, com certeza, continuará quente em cada torcida. Mas o que poderá ser realmente decisivo, nos próximos anos, é a percepção (que talvez surja) de que a SAF pode, de fato, ajudar o clube a se impor dentro de campo e a subir nas tabelas dos campeonatos. Para a maioria dos torcedores comuns, isso é o que verdadeiramente importa. E se é assim, os fatos parecem favorecer a “SAF Já”.
Foi com a SAF implantada que o Cruzeiro e o Vasco da Gama conseguiram sair da Série B. O Botafogo passou a disputar o título de campeão brasileiro e chegou à semifinal da Libertadores. O Fortaleza, SAF desde setembro de 2023, foi campeão da Copa do Nordeste e se tornou o primeiro clube nordestino a liderar o segundo turno da Série A depois de adotado o sistema de pontos corridos. Já se fala até no Novorizontino, que se tornou SAF em dezembro de 2023 e agora está firme no G4 da Série B, com grande chance de subir à Série A. Os torcedores enxergam tudo isso. Mirando estes e outros exemplos, a torcida do Santa Cruz, desesperada para superar a sua crise e sair da Série D, continuará exigindo do seu presidente a implantação da SAF. E exigirá com fúria e pressa cada vez maior. Torcedores de vários outros clubes provavelmente agirão do mesmo modo.
REFERÊNCIAS
(1)E a SAF do Santa Cruz? Checamos | Globo Esporte [acessada em 30.09.2024]
(2)R$3,4 bilhões pra acabar com Corinthians: Leila Pereira bate martelo sobre Palmeiras virar SAF em 2024 | TV Foco [acessada em 30.09.2024]
(3)Torcedor do Botafogo que ofereceu R$ 20 a Textor ganhou o dinheiro como presente de Natal da avó | Globo Esporte [acessada em 30.09.2024]
(4)Conselho Deliberativo do Flamengo aprova mudança no Estatuto para dificultar que clube vire uma SAF | Globo Esporte [acessada em 30.09.2024]