E agora, José?

26 de maio de 1999. Camp Nou, Barcelona. Mais de noventa mil pessoas fixavam seus olhares em David Beckham, posicionado, aos 48 minutos do segundo tempo, para cobrança de novo escanteio a favor do Manchester United. A cena ganhava contornos de déjà vu: apenas um par de minutos antes, o então jovem meio-campista alçara a bola, daquela mesmíssima posição, na área do rival Bayern de Munique, onde caminhos imponderáveis fizeram de Teddy Sheringham o autor do gol de empate em uma partida prestes a se tornar histórica. Estava em disputa, à ocasião, a Liga dos Campeões da UEFA. Os bávaros, ao verem se esvair a vantagem mínima que preservavam desde falta cobrada por Basler no contrapé de Peter Schmeichel, aos seis minutos da primeira etapa, sentiram o golpe. Não bastasse o súbito revés, que abria as portas para os desgastes físico e psicológico de uma prorrogação em tais condições, lá estava uma vez mais a cabeleira loira do prodígio inglês naquele fatídico vértice do campo de jogo. Tão veloz quanto inesquecível, recordo a sequência como registro digno de película: o toque de elegância no cruzamento, o desvio de cabeça do recém-algoz Sheringham (suficiente apenas para que a bola passasse rente à trave defendida por Oliver Kahn) e a conclusão instintiva, como uma aguilhoada mortal, de Ole Gunnar Solskjær – o mesmo que, décadas depois, viria a distribuir instruções à beira do gramado em Old Trafford. Incredulidade ao redor do globo. A virada-relâmpago fizera com que o apito final soasse logo em seguida aos ouvidos alemães como a Sétima Trombeta, transferindo de mãos o troféu mais importante do Velho Mundo e se projetando como exemplo mais bem consumado do Fergie Time – período no qual os Diabos Vermelhos treinados por Sir Alex Ferguson acabavam por dar números terminais ao marcador já durante a agonia dos acréscimos.

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Fonte: trivela.com.br

Aquele confronto possui uma função mítica em minha vida. Não sei bem se narro aqui uma memória precisa ou um desses fragmentos dúbios dos tempos de infância – enquanto mito, de resto, isso pouco importa –, mas uma mirada retrospectiva me leva a crer que se dava ali um instante fundador de mim mesmo: do alto dos meus dez anos, consciente do que se passava, entendia enfim toda a potência do futebol. Com efeito, uma história análoga àquelas contadas por meu pai, arquibaldo quando o Maracanã dos Maracanãs ainda engolia mortais em transe, acabava de se insinuar às retinas de criança. Por meio daquela experiência, eu fora projetado à dimensão metafísica do todo – há algo de transcendente em qualquer bola que cruze a linha do gol, seja esta imaginada entre chinelos, nas ruas de um subúrbio, ou materializada pela cal. Dia após dia, passei a procurar, em cada ida religiosa aos estádios, em cada segundo vidrado diante de uma tevê ou atento aos galopes do rádio, a possibilidade de retornar, trajado em minhas próprias cores, àquele momento originário, de revisitar aquela vertigem, de não mais caber em meus próprios limites graças à catarse gerada pela força motriz das multidões: o gol redentor que antecede o poente dos refletores.

Vinte anos se passaram. No calendário: 23 de novembro de 2019. Estádio Monumental, Lima. Trinta e oito anos após erguer a Libertadores da América pela primeira e única vez, o Flamengo adentrava o relvado diante de quase oitenta mil pessoas para medir forças com o campeão vigente do torneio: o fortíssimo River Plate da era Gallardo, que buscava o feito de levantar o caneco pela terceira vez em apenas cinco anos. A equipe rubro-negra, embora não chegasse à final havia tanto tempo – retornava para uma inédita, logística e culturalmente lamentável edição em contenda única, jogada em cancha pré-definida e transferida de Santiago, a opção inicial, devido à ampla mobilização popular que reivindicava melhores condições de vida à gente chilena –, levava ao Peru um favoritismo chancelado não somente por uma campanha avassaladora no Campeonato Brasileiro (restando quatro rodadas para o término da competição, atingira o recorde de pontos no sistema corrido – o auspicioso número 81, mesmos dígitos do ano que o esquadrão capitaneado por Zico cravou como o mais importante da história do clube ao vencer justamente a Libertadores, além do Mundial Interclubes), mas por atuações que confirmaram um domínio categórico também sobre os dois gigantes de Porto Alegre nos desafios pregressos do mata-mata continental: seguros 2 x 0 contra o Internacional no Maracanã, com empate em 1 x 1 na volta maduramente administrada no Beira-Rio, sucedidos pela mesma igualdade contra o Grêmio no Sul (resultado que camuflou a superioridade do time carioca, que poderia ter voltado à Gávea com a classificação encaminhada) e, é claro, o massacre perpetrado no Templo Maior três semanas depois – nada mais nada menos que impiedosos 5 x 0 sobre os tricolores de Renato Gaúcho, assíduos frequentadores das fases agudas da Copa desde 2017, quando conquistaram seu tricampeonato. Havia no ar do Rio de Janeiro um curioso misto de respeito ao oponente derradeiro e de confiança muito acima da média por parte dos adeptos do Mister, o português Jorge Jesus – combinação temperada com inevitáveis doses de arrogância, que se encarregaram de legar ao passado todo um receio introjetado no espírito por eliminações recentes e vexaminosas além-fronteiras nacionais.

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Fonte: blogdorafaelreis

Com a bola rolando, porém, os Millonarios trataram de demonstrar sem delongas o significado de uma final de Libertadores perante uma camisa enverga-varais: decorridos 14 minutos, o colombiano Borré foi às redes com um arremate rasteiro inapelável para o goleiro Diego Alves, após falha coletiva pelo lado esquerdo do sistema defensivo brasileiro – permissivo não apenas quanto ao espaço para a chegada portenha às costas do tarimbado lateral Filipe Luís, mas ainda incapaz de afastar o perigo de sua área em função de um deixa-não-deixa fatal entre Willian Arão e Gerson. A dianteira no placar era tudo que um cascudo River Plate necessitava para ratificar sua estratégia: busca por domínio mental, marcação pegada e constantemente concentrada, anulação das linhas de passe mais perigosas à sua meta, pressão sobre a bola durante a posse rival… – tudo isso somado à conhecida catimba argentina, empregada com inteligência a fim de fazer e receber faltas estratégicas para impor o ritmo que lhe convinha, minando a paciência e o ímpeto adversários. A tática de El Muñeco conseguia o que nenhuma equipe de nosso país havia feito nos últimos meses, anulando a intensidade rubro-negra, forçando o desafiante a passes errados e transformando a segurança característica do outro lado em ansiedade. A receita para o sucesso, pois, funcionava, e o roteiro parecia inalterável. No entanto, a conclusão do enredo nos é conhecida: uma crônica rodrigueana póstuma, na qual bem poderíamos encontrar a afirmação de que os helenos só inventaram a tragédia enquanto gênero teatral porque lhes faltaram duas traves. Para entender como seria possível uma reviravolta inscrita de imediato na posteridade, é preciso lançar luzes sobre dois nomes que mudaram a trajetória daquela tarde aos pés das montanhas limenhas: Diego Ribas e Lucas Pratto.

O primeiro – que, em função de uma contusão que o deixara fora dos gramados durante longo período, assistiu do banco de reservas à ascensão de seus companheiros ao longo da temporada – entrou em campo no lugar de Gérson, uma das grandes esperanças do Flamengo anuladas na peleja, aos 21 minutos da última etapa; por sua vez, o segundo – um dos heróis na consagração áurea do River no ano anterior, em que marcou um gol em cada partida decisiva contra o arquirrival Boca Juniors, quando os xeneizes estavam à frente do placar tanto na Bombonera quanto no… Santiago Bernabéu (sob olhares revoltos das almas de José de San Martín, Simón Bolívar e demais líderes das independências latino-americanas) – substituiu Borré, que àquela altura já sonhava com o ingresso no panteão dos ídolos alvirrubros, quase dez minutos depois. Quiseram as divindades da bola que o destino passasse por ambos, embora de formas muito distintas. Diego, afinal, conseguiu trazer à sua equipe a mobilidade e dinâmica de que ela tanto necessitava, movimentando-se para construir e distribuir jogadas ao flutuar desde trás entre espaços vazios (e até então raros), ao passo que Pratto, decerto inserido com o intuito de prender a bola em seu campo de ataque com a experiência que lhe cabia, optava por definições no mais das vezes precipitadas e inofensivas.

Ainda que estes pêndulos individuais indicassem vantagem ao brasileiro, o quadro geral se mantinha incólume: River, mais disperso, conquanto ainda guerreiro, um; Flamengo, mais operante, entretanto ainda neutralizado, zero. Eis que, no limite do tempo regulamentar, as duas figuras em questão se encontram. É Pratto quem retém a bola na intermediária ofensiva. Sobre si, nenhuma pressão: há espaço suficiente para cadenciar a velocidade a seu favor. Contudo, delibera como juvenil: força um passe desnecessário pelo meio, interceptado justamente pelo carrinho de um atento Diego. É o primeiro passo da derrocada. A rebatida faz com que a pelota volte em direção ao atacante, mas, antes mesmo de seu domínio se concretizar, Diego, ato contínuo à interceptação, já havia se levantado para novo combate. Via-se ali o contraponto: era gesto de quem compreendia a magnitude do que se passava.

No extremo esquerdo do lado argentino, braços erguidos a rogar por uma inversão de jogo; no direito, um companheiro que fora desde sempre a melhor opção a ser acionada por Pratto, livre para reter a bola como recomenda o manual. Segundo passo da queda: já pressionado de perto pelo camisa 10 do Flamengo, o dianteiro ignora a ambos e escolhe conduzir de modo inadvertido a redonda, que levemente lhe escapa – como se fosse agora um Sófocles a nos apresentar a peripécia de alguma de suas encenações. É o sinal para De Arrascaeta auxiliar Diego na marcação. A dupla pressão culmina em uma roubada de bola que permite ao meia uruguaio avançar contra o campo desguarnecido do River, tomado de assalto. Lá, ele a entrega ao maior fator de desequilíbrio da Copa: Bruno Henrique. Este ensaia um mano a mano já próximo à grande área de La Banda, mas, com a aproximação de um marcador, prefere aplicar um drible no sentido oposto ao da meta, desacelerando a jogada. Quando retoma agressivamente a direção do gol, um átimo depois, sua investida parece cair em uma armadilha, na medida em que os quatro contendores mais próximos avançam em simultâneo num bote múltiplo.

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Fonte: veja.abril.com.br

Dizia Armando Nogueira que o bom jogador vê o seu entorno; o craque, todavia, é aquele que o antevê. Foi o que fez Bruno Henrique. Diante daquele cerco, o brasileiro encontrou um passe desmonta-ferrolhos, entre linhas, como se para isso tivesse ele próprio planejado aquele exato movimento coordenado da defesa. O destinatário, o mesmo De Arrascaeta que o havia encontrado aberto para o contra-ataque em curso, alcançou a bola beijando a linha da pequena área e, lançando-se ao chão em disputa com Pinola, capitão adversário, rolou-a de bandeja para Gabriel Barbosa – o Gabigol. Com Armani imóvel e rendido à primeira trave, bastou ao artilheiro empurrar a redonda para o gol aberto, aos 43 minutos do segundo tempo, para em seguida exibir os muques, o semblante marrento, em sua tradicional comemoração. Ora, que a verdade seja de uma vez exposta: não importa o que digam, todos que assistiam àquele desenlace foram tomados pela mesma certeza, como os ingleses de vinte anos atrás: o empate no placar passava a ser apenas um detalhe provisório; o Flamengo acabara de se tornar campeão das Américas. A pergunta passava a ser tão somente por quanto tempo duraria a vã igualdade. . A resposta não tardou: mal haviam cessado as celebrações, os replays ainda rodavam o mundo dissecando em câmera lenta todos os ângulos, e a dona dos olhares novamente voltava aos pés de Diego, senhoril em seu campo de defesa, próximo ao círculo central. Erguida a cabeça, ele logo avistou Gabigol solicitando lançamento, ao que foi prontamente atendido. Entrávamos no minuto 46. Com a bola em viagem, o máximo goleador do torneio trombou com o gigante Pinola, impedindo-lhe de cortar a ligação à primeira vista despretensiosa pelo alto e ganhando a dianteira após o quique (falha do beque? Méritos do algoz? Ambos?). Numa última tentativa de anular a ameaça – o que lograra com louvor até o letal ataque anterior –, o zagueiro cabeceou a bola de maneira tola, como lhe pareceu possível.

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Fonte: veja.abril.com.br

Não previa, por óbvio,que aquele ato serviria como uma assistência contra si e os seus, clareando o horizonte para o inimigo. Tudo à feição para Gabigol, de dentro da área, fulminar frontalmente Armani, sucumbido, e transmutar-se ali mesmo em lenda, a repetir o feito de Zico: dois gols determinantes no jogo da taça. Em suma: três minutos inscritos na eternidade. Flamengo bicampeão da Libertadores, com script encomendado a um dos mais cultuados deuses do futebol – o Imponderável. Qualquer análise dirá, e com razão, que aquela há de ter sido a pior partida da equipe de Jorge Jesus desde seu encaixe imbatível. Irrelevante. Toda uma geração de torcedores teria desde então a sua existência justificada e se dedicaria a relembrar, entusiasmados, a saga de Lima vida afora. A mitologia rubro-negra ganharia novos imortais, e rapsodos a cantá-los de cidade em cidade, em cada arquibancada visitada: ao lado dos saudosos de 1981, promoviam-se os instantâneos de 2019. De modo sucinto: dar-se-ia a conversão do fato objetivo em narrativa simbólica. Aquela comunhão fantástica ao qual eu, moleque, fora projetado por um embate entre clubes europeus ora se perfazia como rito fundamental para moradores de minha própria terra, de meu próprio bairro, de minha própria vila. Gritos ensandecidos invadiam minha janela, pela qual, em ocasiões extraordinárias, é possível ouvir até mesmo os urros advindos do Maracanã. Mas tais gritos eram externos; não encontravam eco do lado de cá da fenestra.Não em minha casa, alheia à apoteose improvável. Não em minha tevê, cujo volume se mantivera baixo, como quem não quisesse ser divulgado. Não dentro de mim, oco e incrédulo de inveja. Porque, lástima e ironia, mil ais de maldição!: toda minha devoção é em verdade dedicada ao Fluminense, de onde surgiu, como diria Nelson Rodrigues, a seção terrestre daquele Flamengo de regatas, depois de briga havida nas Laranjeiras nos priscos 1911. Eu, que sonhara com um triunfo daquela natureza – e, in loco, vira-o escapar pelos dedos em 2008 –, testemunhava a glória do antagonista.

No dia seguinte, enquanto os jogadores desfilavam com seu povo em carro aberto pelo Centro do Rio, uma derrota do Palmeiras, vice-líder do Campeonato Brasileiro, ainda garantiu protocolarmente o título nacional ao Flamengo, inalcançável em definitivo por sua pontuação sem precedentes. Estava consumado um abismo inédito em nosso moderno futebol de clubes. Era a primeira vez que um time exercia seu domínio em níveis nacional e latino-americano em uma mesma temporada desde o eterno Santos de Pelé, em 1963. Afinal, como isso foi possível? Ao mesmo tempo em que a festa transcorria para tantos, outros milhões mergulhavam numa reflexão que se impunha com premência ao futebol brasileiro, alimentada pelo ameaça de uma hegemonia rubro-negra por vir.

Em face de tamanho domínio dos comandados por Jorge Jesus, um debate ganhou corpo, opondo em geral duas perspectivas supostamente dicotômicas: de um lado, a ênfase na desnivelada distribuição de cotas de televisão para os clubes no Brasil – em geral, sua principal fonte de renda –, que teria favorecido sobretudo o clube de maior torcida em nosso território; de outro, a defesa do choque de gestão levado a termo na Gávea no decorrer dos últimos anos, trazendo uma estabilidade que, para citar bordão da hora, teria erigido o Flamengo a outro patamar em relação aos concorrentes. Aos dados: segundo Paulo Vinicius Coelho, em coluna na Folha de São Paulo intitulada Pobre futebol rico (publicada em 29/09/13)¹, cinco clubes recebiam R$25 milhões cada até 2009 pelos contratos de transmissão com a Rede Globo, a saber: Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Vasco. Em 2013, um salto: as duas agremiações de maior torcida passaram a embolsar R$120 milhões cada – Palmeiras e Vasco, por seu turno, ficaram com R$80 milhões (portanto, R$40 milhões a menos do que os líderes econômicos), um pouco abaixo do São Paulo. Três anos depois, nova renegociação, com validade de quatro anos, e a dupla que rica já era mais rica ficou: meros R$170 milhões cada – e isso sem o montante oriundo do pay-per-view (sistema ao qual logo chegaremos e em que, por razões compreensíveis, estão na ponta). Em 2016, por conseguinte, já eram R$70 milhões a separar Flamengo e Corinthians de Palmeiras e Vasco (estes com R$100 milhões de faturamento, R$10 milhões abaixo do terceiro colocado, novamente o São Paulo).² Em pelotão menos abastado, forças como Atlético-MG, Cruzeiro, Internacional, Grêmio, Fluminense e Botafogo, que outrora recebiam R$45 milhões por ano, elevaram as cifras para R$60 milhões. Ainda assim, o fosso entre este último grupo de gigantes e os dois primeiros clubes do topo passava a ser de R$110 milhões no ponto de origem. Se pensarmos para além do eixo Rio/São Paulo/Belo Horizonte/Porto Alegre, o buraco talvez não tenha fundo. Aqui, como nos índices brutalmente desiguais da sociedade brasileira, não há discurso meritocrata que se sustente. Não por acaso, em seu texto no jornal paulistano, PVC discutia, há cinco anos, o que tem sido cada vez mais chamado de fenômeno da espanholização do futebol, em referência ao país ibérico onde Real Madrid e Barcelona se consolidaram como superpotências demasiadamente dominantes, tornando-se nocivos à própria competitividade de La Liga.

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Fonte: veja.bril.com.br

Em maio deste ano, a partir dos balanços financeiros referentes a 2018 divulgados pelos clubes da Série A, a empresa SportsValue, especializada em marketing esportivo, divulgou um estudo acerca das variadas fontes de receitas em nosso futebol.[4] Segundo as estatísticas, os direitos de transmissão da temporada passada representaram, como sói acontecer, a maior parcela dos valores movimentados: 38% do total. À frente neste quesito ficaram Flamengo (R$222 milhões – o único a ultrapassar a faixa dos R$200 milhões), Corinthians (R$198 milhões), Cruzeiro (R$191), Grêmio/Palmeiras (R$137 milhões) e São Paulo (R$135 milhões). A distância entre os cariocas que abrem o ranking e o tricolor do Morumbi, historicamente bem colocado, foi de R$87 milhões. Impulsionado pelas transferências de jogadores (R$170 milhões), bilheteria (R$116 milhões) e patrocínios (R$95 milhões), o Palmeiras, com fomentos da empresa de créditos Crefisa e praticante do valor médio mais elevado para os ingressos no Brasil[5], faturou 30% a mais do que no ano anterior, batendo o Flamengo na receita total (R$654 milhões contra R$543 milhões) e tentando lhe fazer frente no panorama da bola – vale uma boa análise sobre o papel de mais um exemplo de injeção volumosa de dinheiro externo circunstancial, além da adoção de uma nefasta política de gentrificação nas modernas arenas, que se tornaram tônica no pós-Copa do Mundo de 2014. E em 2019? Pois bem, chegamos a uma alteração substancial no sistema de cotas de televisão. Se até então os direitos eram negociados diretamente com a Rede Globo, a toda-poderosa emissora dos trópicos, a chegada ao Brasil do grupo Turner (Esporte Interativo/TNT) gerou um cenário em que os percentuais das transmissões em canais abertos e no catálogo pay-per-view passaram a ser discutidos em tratativas independentes. Quanto ao primeiro segmento, a Globo enfim buscou estabelecer um critério mais equilibrado para o balanço anual: de uma soma em torno de R$600 milhões, 40% serão igualmente distribuídos entre os clubes da divisão de elite que firmaram acordo (75% entre janeiro e junho e 25% entre julho e dezembro, pagos mensalmente); 30% serão proporcionais ao número de exibições no canal (pagamentos entre maio e dezembro); e os 30% restantes serão por fim repassados ao término do campeonato, consoante a posição final na tabela (pagamento em dezembro).[6] Estaríamos observando o fim de um problema estrutural no que tange à relação dos clubes com as emissoras de televisão, enfim? Bom, não exatamente. A despeito de as fatias concernentes aos canais abertos terem de fato sido mais bem concebidas[7], no que diz respeito ao modelo pay-per-view os valores não deixaram de contribuir para a manutenção de uma balança em muito desproporcional: segundo estudo divulgado pela Ernest & Young, com a nova metodologia adotada (pesquisas por levantamento das torcidas em todo o território do país, e não mais apenas nas capitais), enquanto Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras incrementarão seus caixas, outros clubes de ampla projeção, como Vasco, Fluminense, Botafogo, Grêmio, Internacional, Cruzeiro e Atlético-MG poderão perder receitas em relação a anos anteriores.[8] Em nome da clareza, é bom ressaltar o seguinte: não questiono exatamente se Flamengo ou Corinthians, maiores torcidas do Brasil, devem ou não receber mais das televisões em alguma medida – dada a demanda por exibições de seus escudos nas mais diversas praças, é razoável supor que sim –; o cerne aqui é avaliar se a discrepância exacerbada entre eles e os demais em seus respectivos vínculos com as emissoras é não apenas justa, mas salutar para a concorrência esportiva quando a bola rola. Parece-me elementar que, hoje, os fundos pecuniários dos clubes não se sustentam exclusivamente a partir deste elemento. Itens como negociações de atletas, placas publicitárias, circulação da marca no mercado, adesão de torcedores a programas de associação, capacidade de atrair público ao estádio para captar dividendos com bilheteria, exploração comercial das sedes sociais etc. compõem um cálculo mais amplo, no qual certamente entra na fórmula a capacidade de gestão – ponto reconhecido para o Flamengo, sem dúvida. Se compararmos os outros três grandes do Rio com o multicampeão do ano, há em suas áreas administrativas uma enorme diferença (e, à luz dos últimos acenos políticos da diretoria rubro-negra, vale dizer que apenas administrativamente ela poderia servir como bom referencial possível). Quanto a isto, ao seu modo, Fluminense, Vasco e Botafogo precisam reformular urgentemente seus quadros de maneira mais criteriosa. De toda sorte, a tese que defendo é a de que, se hoje muitos torcedores do Flamengo ensaiam um discurso que ousa minimizar a dimensão das cotas de televisão, eles só podem fazê-lo porque, paradoxalmente, valeram-se delas durante considerável período em dígitos astronômicos, que ajudaram em sua recente engenharia financeira. Que sejam reconhecidos os bons trabalhos realizados, mas sem cairmos nas fábulas das gestões responsáveis que se tornam exitosas por si só, sem influência de uma conjuntura favorável que as precedem. Por isso, a apreensão generalizada dos rivais reside na consideração de que – fato inédito –, o clube de maior receita acumulada do Brasil (graças aos desarrazoados antecedentes descritos acima) passou a ser conduzido por uma gestão que soube se planejar como nenhuma outra em âmbito nacional (dado que, resguardas ressalvas que não cabem neste texto, merece elogios).

Palmeiras tem o preço médio de ingresso mais caro do país. Veja o ranking
Fonte: globoesporte.com

O futuro do futebol no Brasil é sempre incerto, mas a prudência se faz mais do que necessária quanto ao possível agravamento de disparidades econômicas – que, se bem geridas, culminam também em desequilíbrio esportivo. Talvez estejamos “apenas” vivenciando mais um desses episódios meteóricos, quando tudo converge para um sucesso que levará decênios para se repetir em novas linhas; talvez, pelo contrário, o Flamengo consiga doravante replicar a fórmula bem-sucedida de 2019 (técnico afinado com as demandas modernas do esporte, contratações de nomes experientes que buscam um projeto pós-Europa definido, leitura refinada do mercado, investimento em nomes ainda promissores, lançamento calculado de promessas da base, resgate de atletas em baixa…). A barra de exigência foi elevada a um estágio incomum para o cenário de nosso futebol de clubes. Por variáveis econômicas e técnicas, parece que só o Flamengo será capaz de desafiar seus próprios recordes em curto prazo. Aos outros clubes, bem, não há passe de mágica: a transformação, ao fim e ao cabo, deverá certamente partir de uma legítima reivindicação conjunta por partilhas financeiras e estruturantes mais equilibradas (uma Liga própria a gerenciar o Campeonato Brasileiro parece fadada a ser sonho de uma noite de verão…), mas precisará envolver também uma busca por dirigentes capazes de organizar suas instituições e potencializar seus recursos em uma era que lhes exige atualização – em algum grau, o Flamengo emerge como norte. Se, no meio de todo esse processo, ainda for possível considerar na equação uma combate à elitização do futebol como via única e incontornável, nós, torcedores, seremos gratos (o próprio Flamengo é, mesmo em seus jogos lotados, um time do povo?). Mas isso já é assunto para outro texto.

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