Desde os tempos mais remotos, povos de diferentes culturas procuraram dar sentido às experiências utilizando as narrativas orais. E, a partir dessas narrativas, as identidades se constituíram. No campo do esporte e, mais especificamente do futebol, também foi assim. O imaginário do futebol brasileiro foi construído de gol em gol, narrados em épicas batalhas no meio de campo sob a influência de vários gêneros, inclusive textuais.
Em todas as narrativas estavam presentes elementos como espaço, tempo, enredo, personagens e narrador. A partir da necessidade de eternizar lances, dribles e gols, o narrador passou a atuar como uma espécie de mediador, cuja perspectiva e ponto de vista ajudam a construir a história do futebol.
É através da narrativa oral e sincrônica do locutor esportivo, aquela que atribui significado às partidas de futebol através das vozes usadas em diferentes tons, ritmos e pausas que a trama se desenvolve. No entanto, o tempo dessa história é marcado por espaços físicos e psicológicos diferenciados. Mas sempre com a presença observadora e onisciente da figura do narrador. Não como protagonista, mas como entidade responsável por dar ritmo às ondas sonoras que tecem em capítulos a história do futebol. Entre essas vozes e os milhões de receptores das narrativas estão os meios de comunicação, hoje cada vez mais imbricados. No fim do ano passado, li a notícia da contratação da narradora Renata Silveira pela Globo e fiquei pensando na importância dessa ocupação pelas mulheres ainda que paulatina de espaços ainda marcados pelo machismo estrutural da sociedade. Renata se juntou a uma equipe que já incluía mulheres comentaristas e tem uma oportunidade de ouro de ser porta-voz de uma nova narrativa no futebol que traga um olhar mais diverso e inclusivo. Na torcida para que esse nicho seja explorado por outras narradoras e para que bons ventos continuem soprando em favor das mulheres em outras áreas, como a da arbitragem, em 2021.
Ao longo dos anos os locutores foram porta-vozes de muitos discursos, inclusive de um muito presente no futebol que enfatiza o caráter “nacional” do esporte, uma associação que começou lá atrás com o rádio, no período entre guerras. Na época, a BBC, com seu monopólio de transmissão se tornou um órgão central da cultura britânica aumentando o interesse da classe média e moldando o esporte como espetáculo.
Renata é mais uma voz que veio do rádio a ocupar espaço na televisão, o que leva a uma reflexão inevitável sobre o quanto a narrativa televisiva de futebol vem sendo influenciada pelo rádio, inclusive no que tange ao aumento da utilização de bordões. De antemão vale ressaltar as diferenças da narrativas dos dois veículos no que tangem à ausência e à presença da imagem. Sem o auxílio da imagem, o narrador de rádio teve que desenvolver um certo jogo de cintura para cobrir todos os espaços da narrativa com a voz. E o ouvinte que não dispõe da imagem outorga, ou outorgava, já que hoje o rádio também está fazendo transmissão de imagens por streaming, ao narrador a condição de dono da verdade, o que explica em parte a relação de confiança e intimidade estabelecida com o veículo ao longo dos anos. Relação essa que sofreu muitas mudanças com o advento da internet.
A relação de intimidade com o ouvinte sempre foi uma característica marcante das locuções radiofônicas. Já na televisão, talvez pelo gigantismo da audiência, esse contato mais individualizado com o telespectador fica mais complicado . É comum no rádio o locutor ler no meio da transmissão uma mensagem de WhatsApp de dez, quinze segundos ou até mais de um ouvinte.
Segundo o locutor Luiz Carlos Junior, do canal por assinatura SporTV, a televisão também está começando a adotar essa estratégia de interlocução com o telespectador. E, fora das transmissões, ele e outros locutores costumam estabelecer essa interação nas redes sociais.
Mas há quem acredite como o locutor Jose Carlos Araújo, o Garotinho, que durante três décadas foi o locutor número 1 da Rádio Globo e hoje, aos 80 anos, comanda as transmissões de futebol na rádio Tupi, que o narrador de rádio tem mais identificação com o público ouvinte por entrar há mais tempo na residência do torcedor. Há também quem aposte no encantamento do veículo, que tem a capacidade de mexer com imaginário do torcedor e transportá-lo para um espetáculo cercado de magia e de sons.
É o que o narrador Luiz Carlos Junior costuma chamar de espécie de “licença poética do rádio”, que transporta o ouvinte para um mundo mágico em que o jogador chuta e a bola passa perto demais enquanto na televisão a imagem mostra que não foi tão perto assim e ficaria meio esquizofrênico para o narrador televisivo utilizar desse recurso na locução.
Mas mesmo com essa espécie de “licença poética” os tempos mudaram para todos em relação à tolerância ao erro. Hoje, a linha editorial das grandes emissoras de rádio aconselha o locutor assumir o erro que, até pelas longas transmissões com pré e pós-jogos estendidos, é praticamente inevitável.
“Uma partida tem 90 minutos. Normalmente você abre a transmissão uma hora antes e fica até uma hora depois com algumas variações para mais ou para menos. É um tempo muito longo que você fica no ar. É impossível não cometer erros. Você está ao vivo. Tem estudo e planejamento, mas também tem muito improviso. Você dá opiniões no calor da emoção. Então, a gente erra bastante. Antigamente a máxima era: quando errar, bota vírgula e segue em frente. Mas não dá para enganar o ouvinte assim. Hoje a gente precisa chamar a atenção inclusive de erros cometidos lá atrás”. (Eraldo leite)
De uma certa forma, com as redes sociais, o locutor de televisão também ficou muito mais exposto diante do erro já que o torcedor conhece bem o time de coração e não tolera que narrador não esteja totalmente familiarizado com ele. A crítica chega no mesmo minuto às redes sociais.
Antigamente a distância era uma barreira que protegia. Quando o narrador errava o nome de um jogador, por exemplo, o torcedor podia até perceber, mas a indignação ficava com ele. Ou, no máximo, era externada através de uma carta. As correspondências passavam por um processo de seleção e só eram entregues em lotes semanais. Tudo muito distante. Não havia contestação. Hoje as redes sociais são um canal aberto de comunicação e tudo fica exposto. O erro, a crítica, o acerto, tudo vem a público.
Para o locutor da Fox Sports João Guilherme o uso dessas ferramentas sociais exige um certo filtro já que as opiniões dos torcedores muitas vezes são passionais e mudam de acordo com o desempenho do time. Ele conta que aprendeu com o tempo a levar em consideração apenas as críticas construtivas, aquelas que apontam realmente para uma falha não observada durante a transmissão.
Com todos as ressalvas em relação a uma maior exposição trazida pelas novas tecnologias, muitos locutores como Luiz Penido acreditam ter aprimorado muito a narração com a utilização dos recursos de pesquisa proporcionados pela internet durante as transmissões. O colega da Rádio Globo Edson Mauro também se adaptou bem ao uso das novas tecnologias. Trabalha com o celular ao lado tanto para receber mensagens dos ouvintes durante a narração, quanto para tirar dúvidas em relação a algum novo jogador que entra em campo. Assim, consegue complementar a informação ou mesmo fornecer alguma explicação adicional que não tenha sido feito durante a participação do repórter de campo.
Mas independentemente dos recursos que utiliza e das entradas do repórter de campo e do comentarista, que atuam como interventores da narrativa, o narrador é o senhor da transmissão e cabe a ele a missão de estar atento para fazer uma leitura correta do que está vendo. E, assim, vai variando o tom de voz de acordo com o desenrolar da peleja. O clímax da partida é sempre o gol, mas, quando ele não sai, mesmo assim o narrador precisa manter a emoção da transmissão e a temperatura do jogo o menos morna possível.
Referências
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