Gestão do presidente da entidade é aprovada por unanimidade, em colégio eleitoral que remete ao Estado Novo. Leia no novo artigo da série Entrementes em parceria com o LEME-UERJ.
A crônica, à época, esboçou algumas caricaturas para Getúlio Vargas. De todas, talvez esfinge seja a mais bem acabada. Principalmente para quem se interessa por decisões e desdobramentos de cada atitude tomada no Palácio do Catete, durante as duas temporadas à frente da República. De charuto à mão e sorriso no rosto, o presidente se esquivava de gestos bruscos, de opositores e até de aliados – em lentos acenos que colaboravam para a imprevisibilidade da próxima decisão. Os enigmas não se desfizeram com o passar do tempo.
As ações tomam sentidos diferentes, possivelmente opostos, a depender do período histórico e, especialmente, dos olhares dos críticos. As avaliações mais ponderadas notam uma tendência: nada nas políticas de Vargas foi concedido. Com o Brasil em transe, o presidente assumiu o cargo e reagiu a estímulos de toda ordem que vinham da população, crescentemente urbana. As suas ambiguidades decorrem dessa capacidade de incorporar reivindicações, na tentativa de aproveitar o apoio popular.
Bases da estrutura do esporte brasileiro foram criadas durante a Era Vargas. Crédito: Reprodução
A conquista do voto feminino, nos anos 1930, ilumina como a pressão fazia com que a realidade fosse tensionada. As disputas para organizar o futebol também: várias associações reclamavam a legitimidade para administrar a modalidade, em conflitos que se arrastaram pela mesma década. Não é um exagero reconhecer que foi no primeiro período em que Vargas esteve na presidência que as bases para a estrutura esportiva atual foram concebidas. Alicerces, portanto, por ora às vésperas do próprio centenário.
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Trocar de lado na bancada no futebol não é inédito – na prática, a imagem nem tem validade. A metáfora mais cabível é a da porta giratória dos bancos: até porque, assim como operadores do mercado financeiro conseguem com facilidade chegar aos principais cargos das autoridades monetárias no Brasil, gente da comunicação assume frequentemente postos da administração do esporte. Desde quando a organização estava vinculada ao Governo Federal, há registros desse vaivém.
Há casos menos extremos, a exemplo da presença de Leonardo Gaciba à frente da comissão de arbitragem. Ao aposentar o apito e deixar os gramados, a carreira de comentarista se apresentou em curiosa jornada: inicialmente, foi contratado do Grupo Globo; em seguida, trocou a cadeira na cabine de transmissão pelo comando das escalas e dos protocolos direcionados aos juízes; demitido da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), enfim, retornou aos microfones em outro conglomerado de comunicação, formado pela Disney.
Seria possível mencionar o exemplo recente do ex-jogador César Sampaio, que abandonou os comentários no mesmo grupo para assumir uma vaga na comissão técnica da seleção brasileira. Os episódios reforçam como qualquer ideal ascético de autonomia para a cobertura esportiva parece limitado. A associação com patrocinadores e com as entidades que promovem as competições já deixava essa pureza em suspenso; a circulação dos profissionais do esporte para a comunicação escancara mais atravessamentos.
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Ronaldo em vários figurinos: é festejado como um dos principais jogadores da sua geração, símbolo maior da primeira era de intensa globalização nos anos 1990; serve como embaixador para organismos esportivos e multilaterais, ainda que isso exija por exemplo proximidade com as violações aos direitos básicos na Arábia Saudita; imita os maneirismos do mercado financeiro ao agenciar atletas profissionais ou quando assume o comando do clube-empresa da vez; e até se presta a comentar em transmissões de jogos.
Um cabideiro permanece intocável. Ronaldo não se declara político. Nem quando se aproveita da liderança no Comitê Organizador Local da Copa do Mundo de 2014 para minar publicamente o Governo Federal, que havia proporcionado a realização da competição. Sobretudo ao fazer campanha para a oposição e, após ser derrotado, encampar o questionamento do resultado das urnas e a deposição de uma presidenta eleita – em movimento que, no limite, carregou o Brasil para o paroxismo da ignorância do 8 de janeiro de 2023.
Tampouco na defesa da pré-canditatura de um amigo à presidência da República, Ronaldo revira o guarda-roupa. É interessante que o traje político permaneça escondido no armário. Para os negócios, a pretensa isenção o afasta das pautas sociais mais urgentes e garante que não seja necessário opinar. O figurão diplomático segue ileso para os esportes – a despeito de ter protagonizado, entre times, entidades administrativas e veículos de comunicação o mais intenso dos movimentos. Em dinâmica giratória.
Acima de tudo, não ser classificado como político garante um frescor: no momento do lançamento a qualquer campanha, será recebido como novidade pelos desavisados. Foi o que aconteceu na tentativa frustrada de ser presidente da CBF em 2025 – apesar da ligação histórica com dirigentes como Ricardo Teixeira, Ronaldo reclamou da intransigência do colégio eleitoral, do sistema arcaico de votação, da conservação de velhas práticas para o esporte brasileiro. ‘Criticou, é surpreendente!’, a política.
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Ofícios às segundas-feiras. Entrevistas malcriadas. Notas apocalípticas para a imprensa, com medidas cabíveis nunca executadas. Acusações contra outros clubes. Reclamações voltadas às escalações dos árbitros. Promessas de levante, formação de liga ou blefe do gênero. Questionamentos a respeito do uso, da procedência ou da eficiência de novas tecnologias para checar decisões em campo da arbitragem. Pedidos de reuniões extraordinárias para rever os procedimentos em curso.
A constante inquietação após as rodadas contrasta com a aclamação por unanimidade do atual presidente da CBF para um novo mandato. Nas idas e vindas dos seus primeiros anos de gestão, Ednaldo Rodrigues conviveu com ameaças judiciais e a histeria dos clubes. Na eleição, contudo, houve um clima geral de concordância. Pelo menos aos ouvidos públicos, o clima de conciliação tem hora para terminar. A primeira onda de contestação de torcedores fará algum dirigente romper a política de boa vizinhança – como de hábito.
Internamente o apoio de cartolas de federações e clubes parece sólido, mas pode ruir com as ameaças esportivas e políticas. Em campo, a seleção completa na próxima Copa do Mundo, 24 anos sem conquistar o título – maior intervalo desde que o primeiro troféu foi levantado em 1958. Investigações sobre apostas e combinações de resultados, em contrapartida, podem respingar nas autoridades da CBF. Sem prejuízo aparente para a estrutura administrativa da modalidade no Brasil.
Os parâmetros que determinam a organização do futebol seguem, grosso modo, delineamentos que datam do começo do século passado. Nas últimas décadas antes da virada do milênio, houve a transição para a iniciativa privada: sem, entretanto, violar a proeminência de federações estaduais. A aclamação ao presidente sinaliza para continuidades, na contramão do impulso aos recursos particulares na modalidade com o controle empresarial de Sociedades Anônimas do Futebol (SAF).
Este artigo foi originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil no dia 31 de março de 2025.
Helcio Herbert Neto (@exarrobasom) é o autor dos livros Palavras em Jogo (2024) e Conte Comigo: Flamengo e Democracia (2022). Doutor em História Comparada (UFRJ), é formado em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisas sobre cultura popular em âmbito do pós-doutorado na UFF, mesma instituição pela qual concluiu o mestrado em Comunicação.