A utilização do futebol como instrumento legitimador dos regimes autoritários, na tentativa de legalizar atos cometidos pelos militares na América Latina durante o período de exceção.
Jota Silvera
Até os regimes autoritários precisam de reconhecimento, legitimação, e, da associação do regime com a nação – onde governo e pátria se tornem uma coisa só – para tal se fazem necessários símbolos, símbolos estes, que também remetam a nossa identidade.
Por intermédio do carnaval, samba, alegria, cachaça e futebol somos identificados e nos identificamos como brasileiros. Destes elementos todos, o futebol, como qualquer outra atividade lúdica e cultural, tem somada a força de ser envolvente e emocionante, força esta amplificada ao se tratar da Seleção Nacional.
Getúlio Vargas percebeu este potencial, profissionalizou o futebol tornando-o símbolo da identidade nacional, onde negros e mestiços, além de participarem, se tornam destaques, isto reforça a ideia da mestiçagem ou uma democracia racial – segundo tese de Gilberto Freyre – em soma, o alicerce da constituição de nossa brasilidade.
O futebol como esporte coletivo, onde “todos juntos”, sem distinção de raça, credo ou ideologia, com disciplina e amor a camisa tornariam o Brasil grande, moderno, imbatível, transformando a imagem das vitórias futebolísticas no campo internacional, na própria imagem do sistema, sistema este capaz de produzir um povo ordeiro, vencedor, civilizado e avesso a todos os conflitos do mundo; religiosos, raciais ou mesmo sociais.
Nas décadas de 1960 a 1980, o uso político do futebol, se tornaria comum nos países da América Latina submetidos a um regime totalitário como Argentina, Chile e Uruguai.
O jornalista esportivo Roberto Assaf analisa o fenômeno.
As ditaduras militares têm se valido do esporte, especialmente do futebol, mas sobretudo em época de Copa do Mundo, como instrumento propagandístico do seu sistema autoritário. A partir de que momento isso se torna visível?
Se torna mais visível a partir do ato institucional Nº 5, em 1969, mas, já em 1933, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas profissionaliza o futebol, marcando a primeira interferência significativa do Estado no esporte.
Outra intervenção, esta maior, foi em 1941 durante a ditadura Vargas (1937 a 1945) com a criação do CND – Conselho Nacional de Desportos – órgão normativo, com estatuto redigido nos moldes do da Alemanha de Hitler e da Itália de Benito Mussolini. O objetivo de estabelecer as bases de todos os esportes no Brasil, e com isto ter o controle absoluto sobre toda e qualquer competição realizada, seguindo o exemplo dos países comunistas da Europa, que após a segunda grande guerra, têm a premissa de que um país com esporte forte dá a ideia também de um Estado forte, com um povo unido, civilizado e disciplinado. Até 1930 os esportes no Brasil eram muito precários, para ter uma ideia não existiam piscinas no país, as competições de natação eram disputadas nos rios Tiete e Pinheiros em São Paulo, e as do Rio em mar aberto.
Com a realização da Copa do Mundo no Brasil em julho de 1950, aparece a oportunidade de mostrar ao mundo que, apesar de ser um pais subdesenvolvido tinha condições de sediar um evento dessa magnitude fora e dentro de campo. Segundo todos os jogadores da Seleção que entrevistei, o técnico repetiu exaustivamente o pedido de jogar limpo, mostrando disciplina e ganhando pura e exclusivamente pela superioridade técnica da equipe. Quem sabe uma falta antiesportiva tivesse evitado a troca de passes entre Júlio Perez e Alcides Ghiggia , o segundo gol, e a consequente vitória do Uruguai nessa trágica final, já que o empate, dava o titulo a seleção brasileira.
É na Copa do México em 1970, quando Brasil se torna o primeiro tricampeão mundial que este instrumento se faz mais presente ?
Em 31 de agosto de 1969, durante a partida final das eliminatórias, contra o Paraguai no Maracanã, onde este recebeu o maior número de público pagante da história, (apesar de transmitida ao vivo pela Tevê inclusive para o Rio de Janeiro), a junta militar estava reunida no Palácio Guanabara elaborando a segunda Constituição do período ditatorial. E comunicou ao povo na mesma noite, na Resenha Militar em cadeia de radio e televisão em meio aos festejos do povo pela classificação.
Esse governo tinha ampla certeza da qualidade da seleção, considerada a melhor de todos os tempos até o momento, e do poder do futebol como divertimento de massas. Só faltava uma tecnologia de comunicações moderna que cobrisse todo o território nacional. E construíram assim, um novo complexo de comunicações, entre eles a rede nacional de tevê, onde programas como Jornal Nacional e Amaral Neto O Repórter se tornaram a voz oficial do sistema.
Cientes do potencial da seleção naquele ano e com uma rede nacional de televisão, poderiam capitalizar o interesse e a união nacional em beneficio do próprio sistema, algo que fizeram com incontestável competência. A música Pra frente Brasil de Luís Gustavo, cantada por todo o país na euforia ufanista gerada pela transmissão ao vivo da Copa é mais uma prova disso.
O episódio Joao Saldanha tem a ver com a interferência militar ou Zagallo tinha mas competência para dirigir a esquadra canarinho ?
Em todos os setores da sociedade a junta introduziu militares nos cargos de maior hierarquia. No futebol não seria diferente, o chefe da delegação brasileira era o brigadeiro Gerônimo Bastos e toda a comissão técnica também era constituída de militares, com exceção de João Saldanha, consagrado comentarista esportivo aclamado pelas massas como “o comentarista que o Brasil consagrou”, e reconhecidamente homem de esquerda. Mas não cabia dividir os louros da vitória com um comunista. Os militares aproveitaram as críticas de alguns órgãos de imprensa descontentes com o esquema tático 4-2-4 considerado ultrapassado, e com o desempenho da seleção nas eliminatórias. Apesar de classificada, não teve oponentes de peso à altura de Inglaterra, Checoslováquia e Romênia, rivais do Brasil na primeira fase da Copa, e demitiram Saldanha, chamando Zagallo para ocupar o cargo.
Após a conquista do tricampeonato mundial ficou claro que o governo militar capitalizou essa vitória?
A delegação foi recebida pelo presidente Emilio Garrastazu Médici nos jardins do Palácio da Alvorada (ele acertou o placar da final 4 x 1) e na coletiva de imprensa, lançou o bordão “ninguém segura este país”. No embalo da conquista do tri, os militares vão interferir diretamente no futebol, criando um campeonato nacional (dentro do lema integrar para não entregar) a partir de 1971, embrião do campeonato brasileiro de hoje.
A Copa de 1974, na Alemanha não teve participação relevante dos países da América do Sul. Somente em 1978 as ditaduras volveram a agir?
Alguns episódios emblemáticos aconteceram na primeira metade da década de 1970, o Chile de Salvador Allende , Uruguai e Argentina que viviam regimes democráticos foram vítimas também de golpes militares entre 1973 e 1976. O golpe do general Pinochet no Chile transformou o Estadio Nacional num campo de concentração, onde ficaram presos mais de cinquenta mil presos políticos de diversas nacionalidades, majoritariamente sul-americanos. Centenas deles foram sumariamente executados por fuzilamento dentro do própio estádio. O Chile viria a se classificar para a copa de 1974 na Alemanha pela desistência da Uniao Sovietica; negou-se a viajar a Santiago para disputar a partida de volta, em repúdio à ditadura. A Copa de 1978, apesar dos protestos de organizações de direitos humanos, especialmente dos países da Europa, contra as atrocidades cometidas pelos militares, se realiza na Argentina. Para isto foi fundamental o apoio da FIFA que, inacreditavelmente era presidida por um brasileiro. João Havelange fora eleito em 1974, para surpresa de todos, após peregrinação pela maioria dos países do mundo, fazendo promessas de tornar o futebol universal. Promessas que cumpriu, transformando o esporte em um negócio extraordinário.
A Argentina, nos moldes do que o Brasil realizara em 1970, utilizou a copa de 78 para legitimar o regime. A copa vencida pela Argentina teve o famoso jogo contra o Peru que levanta suspeitas ate hoje.
Depois, em 1980, a ditadura uruguaia tentaria com o Mundialito, torneio que reuniu todos os campeões mundias, legitimar também suas ações. Marcando um mês antes um plesbicito para alterar a Constituição e tornar válidas todas as arbitrariedades cometidas durante o regime. Esta tentativa foi frustada com o não da população, e a expulsão das bandas militares do campo do Estádio Centenário no apito final da partida em que o Uruguay derrotou o Brasil por 2 a 1 sagrando-se campeão. Um fato marcante, que determinaria o inicio do fim da ditadura no Uruguay, foi a volta olímpica em sentido anti horário, aos gritos de vai passar, vai passar a ditadura militar”, entoada ao uníssono pela massa.
quem sabe uma falta antiesportiva tivesse evitado a troca de passes entre Júlio Perez e Alcides Ghiggia , o segundo gol, e a consequente vitória do Uruguai nessa trágica final, já que o empate, dava o titulo a seleção brasileira
Até 1930 os esportes no Brasil eram muito precários, para ter uma ideia não existiam piscinas no país, as competições de natação eram disputadas nos rios Tiete e Pinheiros em São Paulo, e as do Rio em mar aberto.
*Publicado originalmente na revista Ponto & Virgula da Facha (1o semestre de 2013)