Jogando como Tiffanny

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Tifanny, do Vôlei Bauru, e Bernardinho, técnico do Sesc-RJ (Reinaldo Canato/VEJA.com – Anderson Papel/Codigo19/Folhapress)

O Sesi-Bauru não conseguiu chegar à final da superliga de vôlei. O clube fez a melhor campanha em sua história na competição, o que inclui a vitória sobre o SESC-Rio nas semifinais.  Esse jogo recebeu ampla atenção midiática não somente por se tratar de um resultado significativo, em termos esportivos. Mas por conta das polêmicas provocadas por um vídeo que mostrava o técnico Bernardinho comentando durante a partida que “um homem é foda”. Essas palavras foram ditas após um exitoso ataque de Tifanny, a primeira atleta transexual do vôlei brasileiro.

Esse gesto de Bernardinho foi interpretado por muitas pessoas como uma demonstração de preconceito. A equipe LGBT Angels Volley Brasil postou em suas redes sociais que “Transfóbicos e homofóbicos não vão passar sem serem apontados na nossa página! Pode ser até o papa do vôlei. Vamos desmascarar todos! Parabéns para o time feminino do Vôlei Bauru, mulheres incríveis que ganharam jogando por merecimento e sem nenhuma vantagem”[1].

O técnico veio a público pedir desculpas, afirmando que não teve intenção de ofender Tifanny e que sua frase fazia referência “ao gesto técnico e ao controle físico que ela tem, comum aos jogadores do masculino e que a maior parte das jogadoras não tem. Sempre trabalhei e tentei ajudar com meu trabalho diversos jogadores e jogadoras sem qualquer tipo de preconceito”[2]

Tifanny aceitou as desculpas, dizendo que “Eu acho que o Bernardo pode ter sido infeliz no comentário, mas ele só se referiu ao meu gesto técnico, em nenhum momento ele se referiu a mim com desrespeito e preconceito. Logo após a partida nós conversamos, ele tem o meu respeito, eu tenho o respeito dele. Eu acredito que ele não fez isso de maldade. Está tudo bem entre eu e o Bernardo”[3]

Bernardinho, sem dúvida, foi muito infeliz em sua colocação. Mas é preciso reconhecer sua capacidade de pedir desculpas, gesto que tem sido cada vez mais raro nos tempos raivosos em que vivemos.

Porém, a justificativa usada pelo treinador é bastante questionável. Ainda não consigo me convencer completamente do que significa um “gesto técnico e controle físico comum aos jogadores do masculino”. Seria o mesmo que dizer que existe um modo de jogar que poderíamos conceber como naturalmente masculino e outro naturalmente feminino? Se a resposta for positiva creio que o problema persiste, pois significa a manutenção de uma diferenciação naturalizada, pouquíssimo problematizada e que fundamenta muitos casos de machismo e homofobia no esporte.

E o pior é que essa naturalização parece estar presente na própria fala de Tifanny quando diz que “Quando eu vi o vídeo, eu já percebi que ele mencionou sobre o meu gesto técnico, que isso eu aprendi e não tem como esquecer, eu vou sempre fazer esse movimento. Eu também sou treinada por um treinador que foi da seleção masculina, o Anderson, e ele nos ensina a fazer esse movimento mais forte, para usar a mão de fora – explica a oposta.” (Grifos meus) [4]

A ênfase nessa oposição masculino versus feminino é um dos mais comuns mecanismos de vigilância nos esportes onde, aliás, há uma razoável resistência aos corpos entendidos como ambíguos e dissonantes. Incômodo que no caso de Tifanny emerge calcada em critérios que estão além da esfera do desempenho esportivo, embora queiram parecer o contrário.

Uma das mais ativas porta-vozes contra a presença de Tifanny nas quadras é a ex-jogadora Ana Paula Henkel que em sua coluna no jornal o Estado de São Paulo publicou uma carta aberta ao COI (Comitê Olímpico Internacional). A ex-jogadora mostrava sua preocupação quanto ao caso Tifanny, pois:

“É com respeito, mas com grande preocupação que escrevo às entidades responsáveis pelo esporte sobre a ameaça de total desvirtuação das competições femininas que ocorre atualmente com a aceitação de atletas que nasceram homens, que desenvolveram musculatura, ossos, capacidade pulmonar e cardíaca como homens, em modalidades criadas e formatadas especificamente para mulheres. Se alguém tem que ir à público e pagar um preço em nome da verdade, do bom senso e dos fatos, estou disposta a arcar com as consequências. O espaço conquistado de maneira íntegra por mulheres no esporte está em jogo. Tenho orgulho de ser herdeira dos valores que construíram a civilização ocidental, a mais livre, próspera, tolerante e plural da história da humanidade. Este legado sócio-cultural único permitiu que nós mulheres pudéssemos conquistar nosso espaço na sociedade, no mercado e nos esportes. Na celebração das diferenças é que nos tornamos ainda mais unidos, homens e mulheres, dentro e fora das quadras. E é apenas com esse legado que podemos olhar para cada indivíduo como um ser único e especial (https://politica.estadao.com.br/blogs/ana-paula-henkel/carta-aberta-ao-comite-olimpico-internacional/)”

Eu poderia gastar linhas e linhas descontruindo os argumentos de Ana Paula. Mas, por hora, basta dizer que essa “civilização ocidental, a mais livre, próspera, tolerante e plural da história da humanidade” é a mesma que durante séculos promoveu guerras, genocídios e escravizou – e ainda escraviza – milhares de pessoas. Isso sem mencionar os anos em que muitas mulheres enfrentaram uma série de obstáculos para a obtenção de igualdade de direitos fundamentais. Ou seja, grande parte da luta de muitas minorias – entre as quais mulheres – foi, e ainda é, contra as opressões criadas dentro daquela civilização ocidental louvada por Ana Paula.

Vale usar as palavras de Edward Said e de modo mais generalizante dizer que “que as sociedades humanas, pelo menos as culturas mais avançadas, raramente ofereceram ao indivíduo qualquer coisa além de imperialismo, racismo e etnocentrismo para tratar com outras culturas”.[5]

Ana Paula, também, diz que “Se alguém tem que ir à público e pagar um preço em nome da verdade, do bom senso e dos fatos, estou disposta a arcar com as consequências”. Certo, Ana Paula. Então vamos aos fatos.

Tiffany teve um desempenho com altos e baixos ao longo da Superliga, pontuando menos que jogadoras como Tandara, por exemplo[6]. Tifanny tem pouco domínio no fundamento recepção, uma fragilidade técnica que costuma ser explorada pelas adversárias, o que ficou bastante evidente na derrota para o Praia Clube nas semifinais da competição. Nesse jogo, Tifanny teve mau desempenho, errando ataques e saques. O seu nome, aliás, não consta na listagem das melhores jogadoras da Superliga, competição vencida pela equipe do Minas. E quem se interessar pelas estatísticas, basta acessar o site da CBV – Confederação Brasileira de Vôlei e, assim, verá que os números de Tyfanny não chamam atenção.[7]

Sendo assim, o fato de ser uma mulher trans ou nas palavras de Ana Paula “um homem biológico”[8] não parece ser decisivo no desempenho atlético de Tifanny, sobretudo no que diz respeito a lhe proporcionar alguma espécie de vantagem sobre suas adversárias.

Ao que parece Tifanny joga como Tifanny com as vantagens e desvantagens comuns à vida atlética de alta performance.

Tifanny joga como Tifanny, mas não podemos esquecer que se trata de uma mulher trans. Agora, sim, faço uso de argumentos que transcendem a esfera do desempenho esportivo, afinal é válido lembrar que estamos em um país que ocupa o topo do ranking em assassinato de transexuais.[9]

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Fonte: http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais

Em 2016, a ONG Transgender Europe[10] divulgou um relatório que mostra que desde 2008, o Brasil em números absolutos contabilizava pelo menos 868 mortes de transexuais. Em números relativos (total de assassinatos para cada milhão de habitantes), o Brasil somente fica atrás de Honduras, Guiana e El Salvador.

Jogar como Tifanny não é fácil em uma sociedade tão preconceituosa.

Jogar como Tifanny é jogar enquanto uma mulher trans que busca a conquista de direitos, atuando de acordo com as normas estabelecidas pelo COI.  Sua presença nas quadras é fundamental para que o esporte se torne, gradativamente, um espaço mais aberto para receber identidades dissonantes e marginalizadas.

[1] Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/lance/ana-paula-critica-tiffany-em-caso-bernardinho-que-rebate-para-mim-voce-nem-existe,fd36cee318ff7b333f7c9b47b7cd521b0ntkjvbt.html

[2] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/tem-esporte/volei/noticia/tifanny-minimiza-polemica-com-bernardinho-nao-se-referiu-a-mim-com-desrespeito.ghtml

[3] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/tem-esporte/volei/noticia/tifanny-minimiza-polemica-com-bernardinho-nao-se-referiu-a-mim-com-desrespeito.ghtml

[4] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/tem-esporte/volei/noticia/tifanny-minimiza-polemica-com-bernardinho-nao-se-referiu-a-mim-com-desrespeito.ghtml

[5] SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 210.

[6] Ver.: https://esporte.uol.com.br/volei/ultimas-noticias/2019/04/05/numeros-mostram-que-tifanny-pontua-menos-e-oscila-mais-do-que-suas-rivais.htm

[7] http://superliga.cbv.com.br/estatisticas-fem

[8] https://esporte.ig.com.br/volei/2019-03-29/tiffany-defende-bernardinho-de-criticas-e-rebate-ana-paula-oportunista.html

[9] Ver.: https://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-PS-Vol14-2016.pdf

[10] Disponível em: https://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-PS-Vol14-2016.pdf

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