Não existe “torcida única” no futebol

Na última sexta-feira, 3 de maio de 2019, defendi a minha dissertação de mestrado, dentro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. E, na oportunidade, analisei as torcidas que cercam o Botafogo da Paraíba para mostrar que grupos grandes não formam nunca uma unidade, uma homogeneidade, mas são acima de tudo plurais e diversos. E rivais.

Gostaria, portanto, de usar o espaço a seguir para falar brevemente daquilo que foi proposto em minha dissertação.

A imprensa, as instituições públicas como a Polícia Militar e o Ministério Público, entre outras entidades que cercam ou acompanham o futebol, tendem a sistematicamente entender e a se referir aos torcedores de um mesmo clube de futebol por termos totalizantes como nação, como bando, etc. Não são. Nunca são. E, muito por isso, ao longo da minha pesquisa aboli o termo “torcida”, no singular, passando a adotar sempre “torcidas”, no plural.

Meu objetivo, portanto, era mostrar como essas torcidas são de fato múltiplas, possuem distintas formas de pertencimento, e estão numa constante relação de rivalidades e alianças entre si.

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Diferentes torcidas do Belo ganham as ruas de João Pessoa e marcham juntas na final do Campeonato Paraibano de 2018.

Iniciei a minha pesquisa no Estádio Almeidão, de João Pessoa, e fiz uma análise comparativa dos dois principais setores do estádio: a Arquibancada Sol (mais popular, com ingressos mais baratos, com uma experiência torcedora mais desconfortável) e a Arquibancada Sombra (menos popular, com ingressos mais caros, com uma experiência torcedora mais confortável). As diferenças entre elas, a propósito, vão além das questões geográficas indicadas em seus nomes, e passam por uma série de categorias que muitas vezes reforçam as rivalidades a partir de preconceitos diversos expressos mutuamente pelos próprios torcedores.

Para tentar entender melhor as distinções existentes nas arquibancadas, pesquisei prioritariamente três grupos de torcedores, sendo uma torcida organizada de pista (mais afeita ao embate e ao conflito e que ocupa o Sol), que é a TJB; uma torcida organizada que se declara pacífica (não afeita a qualquer tipo de violência e que ocupa a Sombra), que é a Império Alvinegro; e um grupo de amigos que não se consideram torcidas organizadas (que têm ojeriza às organizadas, independente de quais são elas), que é o Loucos pelo Belo. A partir destes três, analisei muitas outras identidades, muitas outras formas de pertencimento em torno de um mesmo clube (destaque para a Fúria, uma outra torcida organizada de pista que ocupa o Sol).

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TJB e Fúria, rivais no dia a dia, viajam juntas para Ribeirão Preto e traçam estratégias conjuntas ao longo da viagem. No interior paulista, foram recepcionadas na subsede da Mancha Verde.

Não fiquei apenas no estádio, diga-se. Ao longo de dois anos, foram mais de 50 inserções em múltiplos campos de pesquisa, ampliando o debate das arquibancadas para a circulação dessas torcidas no entorno do estádio, nos bairros de João Pessoa e também para além da capital paraibana, em viagens para acompanhar o time pessoense em jogos fora de casa.

Esqueça, a partir daí, qualquer ideia de homogeneidade. Esqueça qualquer ideia de grupo estanque e imutável.

As torcidas de futebol, mesmo aquelas que cercam um mesmo clube, são extremamente diversas, múltiplas, plurais. Antagônicas e rivais.

No caso do Botafogo-PB, as torcidas organizadas de pista, majoritariamente formadas por pessoas de classe baixa, não se entendem entre si. De bairros distintos de João Pessoa, levam rivalidades iniciadas nos bairros da cidade para as arquibancadas. Mas, em sentido contrário, ambas cantam juntas e em coro quando é para se declararem mais autênticas do que todos os outros tipos de torcedores, vistos por eles como sendo “playboys” ou “playboyzada”.

É apenas o início das tensões. Porque a torcida organizada que se diz pacífica tenta escapar da fama de violenta das organizadas de pista, e a todo momento busca uma separação, uma diferenciação, algo que a afaste da realidade que ela diz combater. E, a rigor, apenas amplia as distinções: de um lado, é criticada pelas torcidas de pista por “só querer ser o que não é”; por outro, não consegue convencer quem não é de torcida organizada da pecha de “marginal”. O termo, aliás, é comumente utilizado pelos “não-organizados” para tratar indistintamente todos os organizados.

Também entre os torcedores que não integram torcidas organizadas, as distinções existem. E são muitas. É quando surge, por exemplo, a figura do “modinha” (o torcedor que só vai ao estádio quando o clube vai bem nas competições que participa), do “babão” e do “corneta” (aquele que respectivamente só elogia ou só critica a diretoria do clube), do “misto” (o torcedor que torce para um clube do próprio Estado e um de fora) e o “paraibaca” (o torcedor que só torce para clubes de fora do Estado).

Chamar alguém de “paraibaca” no contexto dos “não organizados”, por exemplo, pode ser tão grave quanto mexer sem autorização na faixa de uma torcida organizada. Em ambas, o embate torna-se iminente.

No mais, são todos termos êmicos que reforçam as rivalidades, os conflitos, as brigas. Vi dois torcedores, certa vez, apenas como breve ilustração do que destaco aqui, quase trocarem tapas porque um deles, ouvindo o jogo pelo rádio, comemorou a classificação do Vasco para a fase de grupos da Taça Libertadores de América de 2018, estando ele dentro do mesmo estádio em que o Belo (o apelido do Botafogo-PB) acabara de ser eliminado da Copa do Brasil ao ser goleado por 4 a 0 pelo Atlético-MG. O outro não gostou. Xingou o “misto”. Iniciou algo que por pouco não foi uma briga.

Da mesma forma, vi um número grande de torcedores botafoguenses escorraçarem, violentamente de uma das arquibancadas do Almeidão, uma dupla em que um deles vestia a camisa do Vasco e o outro estava enrolado com a bandeira do Flamengo. Eles foram com os adereços do clube do Rio de Janeiro para uma partida do Campeonato Paraibano e acabaram não sendo bem recebidos pelos torcedores botafoguenses que queriam ressaltar os símbolos locais, da própria terra, do Botafogo-PB. Precisam fugir, deixar o estádio, para não sofrerem com consequências mais graves.

A propósito, diga-se, em momentos em que um rival, um inimigo em comum, se apresenta, ameaçando a imagem do Botafogo-PB, as distinções eventualmente poderão ser minimizadas.

Cito rapidamente a final do Campeonato Paraibano de 2018, contra o Campinense. Ou o jogo do acesso (acesso esse que acabou não se concretizando) em que as torcidas do Botafogo-PB viajaram para Ribeirão Preto, para enfrentar o xará de São Paulo nas quartas de final da Série C, em jogo que valia vaga na Série B de 2019.

Em ambas, havia um rival comum. Em ambas, as indisposições, as diferenças, as rivalidades, foram postas de lado. Amizades costuradas precariamente devido a um rival comum.

Amizades esporádicas, fracas, breves.

Afinal, pude constatar que o que realmente une diferentes grupos é o inimigo comum, a ameaça comum, o medo de ser superado, de ser derrotado por esse forasteiro, esse outro tão diferente.

A regra entre as muitas torcidas de um mesmo clube, no dia a dia, são as distinções, as oposições, as diferenças. A unidade é a exceção. E é passageira. Mais do que os amores em comum, portanto, são os medos em comum que unem essas torcidas em momentos decisivos.

Referência da dissertação:

CARVALHO, Phelipe Caldas Pontes. O Belo e suas Torcidas: um estudo comparativo sobre as formas de pertencimento que cercam o Botafogo da Paraíba. 2019. 203 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa e Rio Tinto, 2019.

 

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