Jogos Olímpicos de Paris e “um espectador muito especial” na Arena Champ-de-Mars: quando esporte e guerra se reencontram simbolicamente

Ao acompanhar algumas transmissões ao vivo dos Jogos Olímpicos de Paris pela TV, uma delas me chamou à atenção em especial, não por questões de desempenho atlético, mas por questões arquitetônicas. Uma vez que, até então, não havia acompanhado os noticiários e a mídia em geral a respeito dos locais de disputa dos Jogos, fui surpreendido pela imagem de um “corpo” estranho, um conjunto plástico em granito e bronze, em uma das praças esportivas. Trata-se da Arena Champs-de-Mars (Figura 1), destinada a disputas de judô e de luta. Ao ver o conjunto formado por cavaleiro e cavalo sobre um pedestal em um dos lados da arquibancada, voltado para os tatames, indaguei-me: Quem seria tal nobre cavaleiro e por que estaria ali?

Figura 1 – Interior da Arena Champ-de-Mars
Foto: Architecte Wilmotte&Associes

Durante a transmissão de uma das disputas de atletas brasileiros no judô (se não estou enganado, no dia 28 de julho, à tarde), o próprio locutor do Canal SporTV chegou a fazer menção ao monumento, indicando que o cavaleiro nele representado seria o Marechal Joseph Jacques Césaire Joffre (1852-1931), herói francês da Primeira Guerra Mundial (Figura 2), e ao fato de que, quando construíram a Arena Champs-de-Mars para os Jogos Olímpicos, decidiu-se não remover a estátua de seu local original.

Figura 2 – Marechal Joseph Jacques Césaire Joffre (1852-1931)
Foto: WikiMedia/autor desconhecido

É de conhecimento geral que os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga possuíam uma íntima relação com a guerra. Os atletas eram, antes, guerreiros, que depunham armas para medirem forças em uma praça desportiva erigida como um santuário dedicado a Zeus, na cidade de Olympia. Tal relação não deixou de estar presente também nas edições dos Jogos Olímpicos na Era Moderna, em especial na 11ª edição dos Jogos de Verão em 1936, quando um mausoléu, o Pavilhão de Langemarck (Langemarckhalle), fora construído dentro do complexo olímpico poliesportivo – o Reichssportfeld – em homenagem a milhares de soldados alemães que tombaram na Batalha de Langemarck, em 10 de novembro de 1914. Sem dúvida, essa edificação possuía um significado ideológico explorado pela cúpula nazista em termos de propaganda ao associar, simbolicamente, o soldado ao atleta: a disputa é a batalha, e o atleta, o guerreiro (CORNELSEN, 2006, p. 203-204).

Baseado em uma pesquisa realizada na Internet, notei que tal imagem de um militar francês em uma praça desportiva não chamou muita atenção. Todavia, as poucas notícias encontradas nos permitem tecer algumas conjecturas. Tomemos a seguinte matéria publicada na página da RMCSports em 30 de julho de 2024, assinada por Felix Gabory, intitulada “JO 2024: Porquoi il y a une immense statue militaire en plein milieu des tribunes du judo” (“Jogos Olímpicos 2024: Por que há uma enorme estátua militar no meio das arquibancadas de judô?”): “A estátua equestre do Marechal Joffre jaz altiva no centro de uma arquibancada da Arena Champ-de-Mars, palco das provas de judô nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. O suficiente para intrigar os espectadores”.¹ (GABORY, 2024)

Posso dizer que eu fui um desses espectadores nas arquibancadas e mundo afora que ficaram intrigados com tal estátua. A articulista do Universo Online, Beatriz Cesarini, também registrou, brevemente, seu estranhamento na matéria “Construíram um ginásio olímpico em volta da estátua de um homem a cavalo”, datada de 01 de agosto de 2024:

Quando lotadas, as arquibancadas da Champ-de-Mars Arena, o local onde acontece a competição de judô das Olimpíadas de Paris, recebem mais de 8 mil torcedores e o Marechal Joseph Jacques Césaire Joffre. Para quem não conhece, ele foi comandante dos soldados franceses durante a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 a 1916, e ficou conhecido pela retirada do Exército Aliado e pela derrota alemã na batalha do Marne em 14.

Hoje, Joffre é uma estátua de 4,5 metros de um homem sobre um cavalo que surpreende quem vai ao local para ver o judô —depois, na segunda semana olímpica, o wrestling. (CESARINI, 2024)

Sem dúvida, o monumento dedicado ao militar francês da Primeira Guerra na Arena Champs-de-Mars não deixou de intrigar e surpreender parte dos espectadores nas arquibancadas e mundo afora. Entretanto, vejamos como isso ocorreu em termos arquitetônicos, pois, originalmente, o espaço não foi erigido somente para os Jogos Olímpicos, como se supunha. A página oficial da municipalidade de Paris, Paris je t’aime, apresenta as seguintes informações sobre a Arena:

O Grand Palais Éphémère acolhe os eventos do Grand Palais até a sua reabertura. Durante os Jogos de Paris 2024, o Grand Palais Éphémère – projetado pelo arquiteto Jean-Michel Wilmotte – torna-se a Arena Champ-de-Mars. O local, idealmente localizado entre a École Militaire e a Torre Eiffel, recebe as disputas de de judô e para-judô, bem como as disputas de luta e de rúgbi para cadeirantes.² (ARENA CHAMP-DE-MARS, 2024)

Portanto, o espaço fora criado em 2021 para atender a eventos no período em que o Grand Palais permanecesse fechado e seria aproveitado também em 2024, como praça de esporte. A página Olympics.com, vinculada ao Comitê Olímpico Internacional, exibe informações sobre todas as praças de esporte dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, incluindo a Arena Champs-de-Mars, com capacidade para 8.356 espectadores, sem qualquer menção ao monumento:

Durante os Jogos Olímpicos Paris 2024, a prestigiada Arena do Campo de Marte será muito mais do que a “substituta do Grand Palais”. No entanto, esse é o nome que o local é conhecido atualmente, já que seu prédio temporário de 10.000 m2 está recebendo eventos enquanto as obras são realizadas no Grand Palais. Em 2024, após a conclusão da reforma, a Arena do Campo de Marte será mantida por mais alguns meses para sediar competições dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Paris 2024. 

Projetada pelo arquiteto Jean-Michel Wilmotte, a estrutura de madeira da arena, com suas curvas harmoniosas e estética que refletem o Grand Palais, foi montada no Campo de Marte no início de 2021, em frente à Escola Militar (complexo de edifícios em Paris que abriga várias instalações de treinamento militar). Ao lado desta esplanada, integra-se perfeitamente à paisagem urbana. Graças ao uso de materiais sustentáveis e à estrutura do prédio, o projeto está totalmente alinhado com os padrões ambientais exigidos em Paris 2024. (ARENA DO CAMPO DE MARTE, 2024)

Posto isto, há, pelo menos, dois aspectos importantes a se considerar: o caráter provisório da edificação e o fato de que ela está situada em frente à École Militaire, o que justificaria, em parte, a presença da estátua do Marechal Joffre. Muito apropriada, aliás, tanto pelo complexo de instalações militares nas proximidades, quanto pelo próprio topônimo Champ-de-Mars, que alude a Marte, deus romano da guerra (Figura 3). Não me parece fortuita, também, a escolha do local para a disputa de modalidades de luta corporal. Seria mais estranho ainda se ali tivessem sido disputadas, aos pés do monumento, por exemplo, partidas de voleibol, que ficaram reservadas para a Arena Paris Sul, juntamente com handebol, tênis de mesa e levantamento de peso.

Figura 3 – Vista aérea do Champ-de-Mars (2011), em Paris
Foto: WikiMedia/Mattgirling

Todavia, em nenhuma fonte investigada foi encontrada alguma informação acerca da opção do arquiteto Jean-Michel Wilmotte e de sua equipe em manter o monumento e integrá-lo ao espaço alternativo do Grand Palais e, posteriormente, a uma das arquibancadas da Arena, pois ele poderia ter sido ou removido, ou, por exemplo, envolto com placas que o encobrissem e o protegessem, sem prejuízo para o espaço da Place Joffre e para o próprio monumento. Conforme mencionado anteriormente, devemos levar em conta também que o edifício, originalmente, não foi concebido apenas para as disputas olímpicas, pois fora “[c]riado para acolher os eventos de arte, moda e esporte em sua ala central enquanto o Grand Palais é reformado”, figurando também como “palco de eventos culturais indicados pelo Encontro de Museus Nacionais – Grand Palais” (ARENA DO CAMPO DE MARTE, 2024). E seu caráter provisório é mais uma vez ressaltado na matéria: “O local não terá lembranças dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, pois a instalação temporária será desmontada no outono de 2024. Poderá ser reaproveitada com múltiplas configurações em outro lugar a ser determinado” (ARENA DO CAMPO DE MARTE, 2024). Nas fontes institucionais consultadas sobre a Arena Champ-de-Mars, em geral, não aparecem menções à estátua do Marechal Joffre. Entretanto, em sua matéria publicada no site Universo Online, Beatriz Cesarini traz uma reflexão pertinente acerca da relação entre espaço permanente e edificação provisória, embora não atente para o fato de que, anteriormente, ela fora utilizada para outros fins e levava o nome de Grand Palais Éphémère:

E, apesar de os Jogos de Paris terem feito questão de reaproveitar arenas já existentes, não é o caso. No lugar de construir uma estátua dentro do ginásio, o que aconteceu agora foi um ginásio erguido em volta da estátua. Quando acabarem as Olimpíadas (e as Paraolimpíadas, que serão realizadas em Paris entre 28 de agosto e 8 de setembro), o Marechal Joffre e seu cavalo voltam a céu aberto, já que o ginásio será desmontado. (CESARINI, 2024)

Cabe ressaltar que a estátua equestre em bronze do Marechal Joffre (Figura 4), colocada sobre uma base de granito, foi esculpida pelo artista plástico Maxime Real del Sarte (1888-1954) e inaugurada no Champ-de-Mars, na Place Joffre, em 10 de junho de 1939, portanto, poucos meses antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial (MONUMENT AU MARÉCHAL JOFFRE, 2024).

Figura 4 – A estátua equestre do Marechal Joffre no interior da Arena Champ-de-Mars
Foto: RMC Sports

Enfim, como ressalta Felix Gabory (2024), a Arena Champ-de-Mars contou “com a presença de um espectador muito especial em herança”³. Cabe lembrar que todo monumento tem por finalidade perpetuar a memória de determinada figura ilustre ou evento significativo em termos históricos para uma dada “comunidade imaginada”. Aparentemente fortuito, acabou por haver um reencontro simbólico entre esporte e guerra nas dependências da Arena Champ-de-Mars. Nesse sentido, não posso deixar de recordar as palavras do filósofo e crítico da cultura alemão Walter Benjamin, ao afirmar em seu famoso ensaio intitulado “Sobre o conceito da história” (Über den Begriff der Geschichte, 1940), publicado postumamente em 1942, que “nunca há um documento de cultura que não seja também um documento de barbárie”?. (BENJAMIN, 1991, p. 696)


Referências bibliográficas

ARENA CHAMP-DE-MARS – Jeux de Paris 2024. Paris je t’aime, 2024. Disponível em: https://parisjetaime.com/culture/arena-champ-de-mars-jeux-de-paris-2024-p4207. Acesso em: 12 ago. 2024.

 

ARENA DO CAMPO DE MARTE. Olympics.com. 2024. Disponível em: https://olympics.com/pt/paris-2024/sedes/arena-champ-de-mars. Acesso em: 12 ago. 2024.

 

BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte (1940). In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. v. 1, org. Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 690-708.

 

CESARINI, Beatriz. Construíram um ginásio olímpico em volta da estátua de um homem a cavalo. UOL. 01 ago. 2024. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/olimpiadas/ultimas-noticias/2024/08/01/monumento-de-45m-vira-espectador-na-arena-do-judo-durante-olimpiadas.htm. Acesso em: 12 ago. 2024.

 

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Classica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos. V. 19, n. 2, p. 196-223, 2006. Disponível em: https://revista.classica.org.br/classica/article/view/115. Acesso em: 12 ago. 2024.

 

GABORY, Felix. JO 2024: Porquoi il y a une immense statue militaire en plein milieu des tribunes du judo. RMCSports. 30 jul. 2024. Disponível em: https://rmcsport.bfmtv.com/jeux-olympiques/jo-2024-pourquoi-il-y-a-une-immense-statue-militaire-en-plein-milieu-des-tribunes-du-judo_AV-202407300337.html . Acesso em: 12 ago. 2024.

 

MONUMENT AU MARÉCHAL JOFFRE, 2024. À nos grands hommes, 2024. Disponível em: https://anosgrandshommes.musee-orsay.fr/index.php/Detail/objects/5449. Acesso em: 12 ago. 2024.


Notas

¹  Salvo outra indicação, todas as traduções do Francês e do Alemão são de minha autoria. No original: La statue équestre du Maréchal Joffre trône fièrement au centre d’une tribune de l’Arena Champ-de-Mars, théâtre des épreuves de judo aux JO de Paris 2024. De quoi intriguer les spectateurs.

² No original: Le Grand Palais Éphémère accueille les événements du Grand Palais jusqu’à la réouverture de ce dernier. Pendant les Jeux de Paris 2024, le Grand Palais Éphémère – conçu par l’architecte Jean-Michel Wilmotte – devient l’Arena Champ-de-Mars. Le lieu, idéalement situé entre l’École Militaire et la tour Eiffel, accueille les épreuves de judo et de para judo, ainsi que les épreuves de lutte et de rugby fauteuil.

³ No original: Avec la présence d’un spectateur assez particulier en héritage.

? No original: Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne ein solches der Barbarei zu sein.

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