Mulheres de Ouro: as Atletas Brasileiras e a Perspectiva Interseccional nas Olimpíadas

Nas últimas décadas, o Brasil tem assistido ao crescimento da visibilidade de mulheres atletas no cenário esportivo e midiático internacional. Esse cenário é ainda mais interessante quando esta visibilidade não está associada à hipersexualização dos corpos das mulheres atletas, como comumente era visto em anos anteriores.  O ponto alto em torno dessa discussão no âmbito social foram os resultados das Olimpíadas da França deste ano. Rebeca Andrade (Ginástica), Beatriz Souza (Judô) e a dupla Duda e Ana Patrícia (Vôlei de praia) foram as únicas atletas, entre homens e mulheres, a conquistarem o pódio mais alto nesta edição dos Jogos Olímpicos. O impacto dessas conquistas vai além da quantidade de medalhas, especialmente quando observamos estas conquistas pautadas por questões de gênero, raça e classe social, refletindo a diversidade e as desigualdades que compõem o tecido social brasileiro. Ao lado dessas vitórias, surgem figuras como Rebeca Andrade, cuja ascensão como campeã olímpica e protagonista no marketing esportivo nacional que, não só simboliza o sucesso das atletas, mas também levanta um debate em torno da interseccionalidade e da trajetória de vida dessas atletas.

Ana Patrícia e Duda nos Jogos de Paris 2024. Foto: Reprodução/Instagram Ana Patrícia Ramos

Marta (futebol), Rafaela Silva (judô) e a dupla Duda e Ana Patrícia (vôlei de praia) são exemplos de como mulheres brasileiras não apenas enfrentam desafios esportivos, mas também ultrapassam barreiras históricas e sociais. Mulheres que, na maioria das vezes, vieram de origens humildes, enfrentam racismo, machismo e falta de investimento. Suas histórias de luta são potentes em um país onde a desigualdade de gênero e raça ainda marca profundamente as oportunidades, condições de trabalho e os acessos a certos espaços.

Rebeca Andrade, em particular, personifica o triunfo de quem atravessou essas camadas de opressão para se tornar uma figura de destaque mundial. Nascida na periferia de Guarulhos, em São Paulo, Rebeca enfrentou dificuldades financeiras, lesões que poderiam ter encerrado sua carreira de forma precoce e é advinda de um projeto social. Nesta perspectiva, é essencial adotar uma abordagem interseccional neste debate, o termo cunhado por Kimberlé Crenshaw, que aborda como diferentes formas de discriminação (gênero, raça, classe, geográfica, entre outras) se cruzam e criam experiências únicas de opressão ou privilégio. No caso das mulheres atletas brasileiras, essa abordagem adensa as complexidades de suas trajetórias e chegada ao pódio mundial.

Muitas destas mulheres campeãs enfrentaram, ao longo de suas vidas, o racismo que permeia as estruturas esportivas e sociais. Como exemplo, Rafaela Silva, medalhista de ouro no judô nas Olimpíadas de 2016, sofreu ataques racistas após uma derrota anterior. O público expôs toda a hostilidade racial, profundamente enraizada no Brasil, com xingamentos e discursos de ódio de cunho racista. Na edição dos Jogos em 2024, Rafaela foi a responsável também pela primeira medalha da competição mista e em grupos do judô, sendo a responsável direta pela conquista do bronze para o Brasil. Cabe ressaltar que 12 das 20 medalhas conquistadas pelo Brasil, foram conquistas femininas. Grande parte das atletas vêm de origens humildes e de projetos sociais, o que chama a atenção sobre como o esporte é potente transformador de realidade e mobilizador social (Passos et. al, 2017). Dessa forma, as olimpíadas de 2024 corroboram com a reflexão ao ter apenas mulheres no pódio máximo conquistando o ouro, sendo a maioria delas negras e de origem periférica, além da nordestina e sergipana Duda. 

Nesse âmbito, Rebeca Andrade destaca-se como um exemplo vivo do debate sobre a interseccionalidade nos esportes. Negra e vinda da periferia, ela representa uma conquista que vai além do esporte: sua vitória é também a vitória de uma classe social que historicamente têm menos oportunidades e de um grupo racial que ainda enfrenta marginalização estrutural. Em paralelo ao seu sucesso nos ginásios, Rebeca também se tornou uma figura central no marketing esportivo brasileiro. Ela está à frente de grandes campanhas publicitárias, associando-se a marcas de peso e representando uma mudança no modo como o esporte feminino é percebido e comercializado. O atrelamento da imagem da atleta ao empoderamento feminino, à diversidade racial e ao triunfo pessoal,  tornando-se uma fonte de inspiração para milhões de meninas brasileiras, especialmente negras e periféricas, tem seu valor. Todavia, ele dialoga também com o feminismo de mercado (Barreto Januário, 2022) e a comoditização de pautas feministas e femininas, que vende o individual como um empoderamento coletivo, algo que não poderia ser mais falacioso. Se por uma lado, este é um movimento necessário, mesmo que tardio, ao observar que a mídia é um dispositivo pedagógico (Fisher, 2002) e um espaço de pedagogias culturais (Louro, 2008), que mobilizam e pedagogizam representações sociais e culturais. Devemos lembrar que, por muito tempo, as campanhas publicitárias no esporte brasileiro foram dominadas por homens, em especial brancos. Ver uma mulher negra e periférica, como Rebeca, despontando como símbolo de sucesso é uma vitória simbólica que precisa também ser celebrada. Há de certa forma, uma ruptura às normas tradicionais do marketing esportivo, mas também reconfigura o imaginário nacional sobre quem pode ser ícone de sucesso no Brasil. É um fenômeno complexo que merece pesquisas aprofundadas.

Embora as vitórias de atletas como Rebeca sejam inquestionáveis, os desafios continuam. O esporte feminino no Brasil ainda enfrenta desigualdades significativas em termos de financiamento, infraestrutura e visibilidade. Enquanto atletas masculinos muitas vezes recebem apoio financeiro robusto e amplo reconhecimento, as mulheres ainda precisam lutar para conquistar mínimas condições para o treinamento. Isso é ainda mais latente para atletas negras, que enfrentam camadas adicionais de preconceito racial e desigualdade econômica. Além disso, a crescente presença de mulheres no marketing esportivo precisa ser acompanhada de um compromisso real das marcas em apoiar o desenvolvimento contínuo do esporte feminino, e não apenas usá-lo como uma forma de capitalizar sobre o feminismo ou a diversidade de forma superficial. Campanhas de empoderamento precisam vir acompanhadas de ações concretas que garantam que o sucesso de atletas como Rebeca não seja exceção, mas regra.

A ascensão de Rebeca Andrade como campeã e estrela do marketing esportivo é um exemplo claro do poder do investimento no esporte e na periferia. Ao celebrarmos essas mulheres, devemos reconhecer não apenas suas vitórias, mas também as estruturas que elas desmantelam e as novas narrativas que constroem para futuras gerações.


Referências:

BARRETO JANUÁRIO, Soraya. Feminismo de mercado: um mapeamento do debate entre feminismos e consumo. cadernos pagu, p. e216112, 2021.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e pesquisa, v. 28, p. 151-162, 2002.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-posições, v. 19, p. 17-23, 2008.

PASSOS, Felipe Barbosa; ATHAYDE, Pedro Avalone. ESPORTE E POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL: UMA DISCUSSÃO SOBRE CIDADANIA E EMANCIPAÇÃO HUMANA. Pensar a Prática, v. 21, n. 3, 2018.

 

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