Neymar, Masculinidades Futeboleiras e a Blindagem de Ídolos no Futebol Brasileiro

A volta de Neymar ao Santos foi anunciada como um evento histórico, acompanhado de uma grande comoção nacional e narrativas redentoras que reforçam a imagem de “filho pródigo” que volta à casa. Todavia, essa celebração incondicional expõe não apenas o poder do futebol como espetáculo midiático (Matias, 2020), mas também a maneira como a sociedade brasileira exalta determinados modelos de masculinidade, muitas vezes ignorando comportamentos nocivos e blindando figuras públicas de suas responsabilidades.

Desde sua ascensão no Santos no final da década de 2000, Neymar foi projetado como um menino prodígio, carregando a promessa de grandes feitos e conquistas para o clube e consequentemente, para a Seleção Brasileira. Esse status privilegiado na cultura esportiva nacional fez com que atitudes infantis e polêmicas ao longo de sua trajetória, fossem minimizadas ou rapidamente esquecidas em nome do espetáculo e do talento. A volta ao Santos reforça essa lógica. Apesar de um histórico repleto de polêmicas, como denúncias de agressão, traições públicas e comportamento imaturo, “o menino Ney” continua a ser tratado como um herói. Mesmo que a entrega em campo siga decepcionando. Essa indulgência seletiva contrasta com o julgamento severo imposto a mulheres e outras figuras públicas que cometem atos socialmente repreensíveis. Segundo Ana Fiori e Mariane Pisani (2022) é a construção das feminilidades em contraste com as masculinidades viris que moldam o ambiente do futebol. Segundo as autoras, as mulheres são categorizadas entre as respeitáveis — mães, esposas, namoradas, irmãs e filhas — e aquelas vistas como abjetas.

Neymar no vestiário do Santos no espaço reservado ao Rei Pelé — Foto: Reprodução/Santos

A chamada “cultura do cancelamento” muitas vezes opera de maneira desigual, protegendo mais os homens do que as mulheres, especialmente em contextos de poder e visibilidade midiática (Elias, 2023). Cabe ressaltar, que o cancelamento não acontece em um vácuo, mas dentro de uma estrutura social que historicamente já penaliza mais as mulheres por seus comportamentos e erros, numa lógica moralizante e de vigilância social (Foucault, 2013), enquanto concede segundas chances e blindagem para homens, especialmente aqueles em posições de destaque. 

O “perdão automático” concedido a figuras como Neymar reflete com clareza o pacto da masculinidade (Connell, 2020), um mecanismo de cumplicidade que protege e perpetua privilégios masculinos. No futebol, certos comportamentos não apenas são tolerados, mas incentivados, especialmente quando protagonizados por ídolos. A figura do “craque problemático”, que desrespeita regras mas encanta com a bola nos pés, é romantizada.

A Blindagem de Ídolos e a Cultura da Impunidade

O futebol brasileiro é um dos ambientes mais potentes na construção da identidade masculina (Goellner, 2021). Desde a infância, meninos aprendem que “ser homem” está associado à força, à competitividade e ao domínio (Louro, 2008). Esse modelo se reflete no esporte, que valoriza jogadores que exibem virilidade, ousadia e até certo grau de arrogância dentro e fora do campo. Neymar sempre incorporou bem essa identidade: carismático, talentoso e, ao mesmo tempo, impulsivo e irresponsável.

Esse modelo de masculinidade futeboleira cria um sistema de blindagem para os ídolos. Cabe ressaltar que o que chamo de “masculinidades futeboleiras” se refere às diferentes formas de construção e performance das masculinidades dentro do universo do futebol. E envolve aspectos culturais, sociais e simbólicos que moldam os comportamentos, identidades e relações de gênero no cenário futebolístico. E ainda, destaca como o futebol historicamente tem sido um campo de reforço de normas masculinas hegemônicas, mas também de disputas e ressignificações dessas masculinidades. 

Nesse sentido, os homens podem ser imaturos, desrespeitar companheiras, se envolverem em escândalos de violência contra mulher, políticos ou financeiros – ainda assim, serão defendidos por uma base de torcedores que os enxergam como a representação máxima do que é ser homem, o que Raewyn Connell (2020) vai chamar de masculinidades cúmplices. O retorno de Neymar ao Santos exemplifica essa lógica, no qual muitos que hoje o ovacionam, ignoram ou relativizam seu comportamento, pois, para o clube e a torcida, o que realmente importa é sua habilidade no campo. Como bem coloca Margarita Pisano (2002, p.22 – tradução nossa) “ A massa “futeboleira”, [segue] amando os seus semideuses esportistas, apaga os indivíduos, as suas capacidades individuais, anula a visão crítica: o fanático não pensa, não questiona, está sujeito à crença e a adoração, renovando e recriando a ideia de super-homem. Vimos casos mais graves com as tentativas de contratação do goleiro Bruno e de Robinho, pós-condenação por estupro na Itália.

Essa exaltação incondicional tem consequências. Ao fortalecer uma cultura no qual homens são pouco cobrados e infantilizados por suas atitudes, ao mesmo tempo em que seguem ocupando posições de prestígio. Mesmo que isso aconteça após falhas de caráter reiteradas e atos criminosos comprovados pela justiça, fica evidente o reforço da lógica patriarcal e sexista do domínio masculino (Bourdieu, 1995) e a construção de uma cultura do estupro (Barreto Januário, 2024). Essa questão obviamente não se limita ao futebol, se estende, por exemplo, ao entretenimento e a outras áreas da sociedade. O que vemos é a manutenção de um sistema que protege homens em suas lógicas interseccionais, com poder de classe e atenção midiática, ao mesmo tempo que os exime de responsabilização real das práticas escusas ou criminosas.

Neymar e o Bolsonarismo: Um Reflexo da Masculinidade Futeboleira Conservadora

A relação de Neymar com o bolsonarismo reforça a sua conexão com valores conservadores e patriarcais. O apoio explícito a Jair Bolsonaro, um político que, vale lembrar, teve a gestão marcada por posturas machistas, negacionistas e autoritárias, reforça uma lógica sexista que já se manifestava em outros aspectos da conduta de Neymar, dentro e fora de campo.  Durante o governo Bolsonaro, o jogador fez declarações públicas de apoio ao ex-presidente, alinhando-se a um discurso que frequentemente minimizava direitos sociais, ambientais e de igualdade de gênero. É pertinente ressaltar que, por exemplo, Neymar é um dos investidores de um projeto que visa privatizar praias no litoral nordestino

O apoio do jogador a Bolsonaro não foi apenas simbólico, mas ajudou a normalizar a retórica ultraconservadora no universo do futebol. Mesmo assim, para muitos torcedores, mesmo aqueles de pensamento mais progressista, essa associação política foi irrelevante. Mais uma vez, vemos como a seletividade moral opera a favor de ídolos masculinos. Em diversas ocasiões Neymar se posicionou como alguém que rejeita responsabilidades sociais mais amplas. A postura que o jogador adotou diante de acusações de abuso e estupro, entre outras, bem como a forma como vem lidando com a exposição pública de suas companheiras, evidenciam essa masculinidade hegemônica, que se apoia na impunidade e no culto à figura do “menino Ney”.  Pautado em valores conservadores que reafirmam o papel do homem como dominante, desvalorizam o feminismo e o feminino, descredibilizando denúncias de violência de gênero (Menezes, 2021). Dessa forma, Neymar reforça o arquétipo do homem bem-sucedido que se sente acima das críticas, respaldado por uma estrutura que relativiza comportamentos machistas e transfere a culpa para as vítimas. 

Mesmo que no âmbito privado, outro episódio que ilustra a indulgência seletiva em relação a Neymar foi a traição à sua namorada, Bruna Biancardi, enquanto estava grávida. A infidelidade, exposta publicamente, foi tratada como uma “fofoca” costumeira no universo do futebol, como algo irrelevante. Todavia, nos últimos anos, Neymar tem passado por um processo de reabilitação de imagem, no qual tenta se reposicionar como um “homem de família” e um cristão evangélico devoto. Essa estratégia não é inédita e já foi utilizada por diversas figuras públicas que enfrentaram polêmicas, como é o caso Daniel Alves, que também tenta reconstruir sua reputação com base em valores tradicionalmente bem aceitos pela sociedade brasileira, como família, religião e redenção (Menezes, 2021). 

Essa estratégia faz parte de um fenômeno comum no Brasil: homens públicos podem errar repetidamente, desde que demonstrem arrependimento e reforcem a imagem de “bons pais” e “homens de família”. Esse discurso serve como escudo para desviar o foco de comportamentos erráticos e garantir apoio de torcedores e do público conservador. Dessa forma, Neymar tem se apoiado cada vez mais na sua identidade cristã evangélica como um elemento-chave na reconstrução de sua imagem. 

A comoção gerada pela volta de Neymar ao Santos revela muito mais sobre a cultura do futebol e da masculinidade futeboleira no Brasil, do que sobre o próprio jogador. É um reflexo de um sistema que exalta e infantiliza homens adultos, na justificativa de atitudes sexistas, que minimiza violências e os mantém em posição de prestígio, independentemente de seu comportamento. Se o futebol pretende evoluir e se tornar um ambiente mais ético e inclusivo, precisa rever a forma como trata seus ídolos e constrói suas narrativas. O esporte não precisa apenas de craques; precisa de exemplos dentro e fora de campo. Sem essa mudança estrutural, o universo do futebol continuará sendo um espaço de reprodução de desigualdades e estereótipos, perpetuando um modelo de masculinidade que, em vez de inspirar, apenas reforça e legitima padrões hegemônicos nocivos.

Referências

BARRETO JANUÁRIO, Soraya. Quanto custa estuprar uma mulher: cultura do estupro e futebol no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 182, n. 24, 2024.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação & realidade, v. 20, n. 2, 1995.

CONNELL, Raewyn. W. Masculinities. Londres: Routledge, 2020.

ELIAS, Isabella de Souza Copetti. Discurso de ódio contra mulheres: estudo sobre a cultura do cancelamento proferido nas mídias sociais e análise de caso. 2023.

FIORI, Ana Letícia de; PISANI, Mariane da Silva. Feminicida não merece torcida: imagens e repercussões sobre o caso Eliza Samúdio e a trajetória do ex-goleiro Bruno Fernandes. Ponto Urbe. Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, v.2, n. 30, 2022.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento, v. 27, p. e27001, 2021.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-posições, v. 19, p. 17-23, 2008.

MATIAS, Wagner Barbosa. Futebol de espetáculo. Editora Appris, 2020

MENEZES, Sabrina Lasevitch. A tentação de Eva e a caixa de Pandora: uma análise arquetípica do caso Neymar vs. Najila segundo as primeiras mulheres das mitologias grega e judaico-cristã. Brazilian Journal of Development, v. 7, n. 4, p. 42823-42843, 2021

Deixe uma resposta