Nossa luta realmente importa? Reflexões sobre a (in)visibilidade da causa LGBTQIAPN+ no futebol

Apesar de parecer um fenômeno “recente”, a luta por um futebol mais inclusivo e diverso não começou nos últimos anos. Diferentes pesquisas mostram, como a Coligay, torcida do Grêmio, formada principalmente por homens que se identificavam como gays, frequentava o estádio do tricolor gaúcho entre 1977 e o início da década de 80 (Anjos, 2018; Anjos e Pinto, 2023). Há ainda alguns registros de uma outra torcida semelhante na mesma época, a FlaGay, do Flamengo, que foi perseguida especialmente pelo Jornal dos Sports, principal jornal esportivo do Rio de Janeiro na época, e também por dirigentes do clube rubro-negro (Pinto, 2017; 2019) e que, ao contrário da Coligay, não chegou a conseguir frequentar os estádios.

Mais recentemente, a partir de 2013, podemos destacar o crescimento das chamadas torcidas queer e de novos movimentos de torcedores contrários não só à LGBTfobia, mas que também se manifestam contra o racismo e o machismo que ainda perpassam o futebol. Pinto (2017) identificou páginas de torcidas queer no Facebook como a Bambi Tricolor, a Galo Queer e a Palmeiras Livre, além do Movimento Toda Poderosa Corinthiana, coletivo de mulheres que surgiu no contexto de 2016, quando houve um crescimento de campanhas e ações organizadas por coletivos feministas que usavam as redes sociais para dar visibilidade a questões ligadas ao machismo, desigualdade de gênero e violência contra as mulheres, como a campanha “#meuprimeiroassédio”.

Hoje, segundo levantamento feito pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+², existem cerca de 19 torcidas LGBTQIAPN+ no futebol brasileiro, atuando de forma conjunta com o Coletivo a fim de resistir a esse ambiente onde diferentes formas de violência são direcionadas aos sujeitos que não performam os ideais de masculinidade hegemônica da nossa sociedade. A presença dessas torcidas se dá, principalmente, no ambiente digital, através de páginas no Instagram e X (antigo Twitter), e também a partir da criação de grupos no WhatsApp, que permitem que pessoas LGBTQIA+ criem vínculos de amizade com outras pessoas que também torcem pelo mesmo time, algo tão comum quando pensamos em futebol e sociabilidade. Para além do ambiente digital, apesar das perseguições que muitas torcidas LGBTQIA+ sofrem, algumas delas também têm presença nos estádios, como a LGBTricolor (Bahia) e a Palmeiras Livre.

Diante desses pequenos avanços, nos perguntamos como os clubes de futebol têm tratado questões relacionadas à comunidade LGBTQIA+. Sabemos que essas pessoas existem, torcem e nutrem um amor pelos seus clubes. No entanto, muitas vezes, esse amor é “proibido” por pessoas LGBTfóbicas que acreditam ali não ser o lugar para elas, o que faz com que muitas dessas pessoas não frequentem estádios, por exemplo, por não se sentirem seguras dentro de um lugar onde temos a manifestação de um “currículo de masculinidades” (Bandeira, 2010), sempre muito ligada aos ideais cisheteronormativos. Esse questionamento é um dos norteadores de uma investigação maior em andamento desde 2023 no mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dessa forma, temos buscado refletir e questionar como clubes de futebol absorvem pautas não só ligadas às pessoas LGBTQIA+, mas outros temas de uma agenda “progressista”, e entender se isso tem sido feito com o devido aprofundamento e com a proposição de ações práticas.

Segundo um levantamento que está sendo realizado para compor o corpus da minha dissertação de Mestrado, a partir dos dados do 1º Anuário do Observatório da LGBTfobia no Futebol, produzido pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+, de informações divulgadas pelos portais Uol Esporte³ e GloboEsporte.com4 e de coletas manuais, o número de times que se posicionam no Dia do Orgulho LGBTQIAPN+ (28 de junho) teve um aumento em 2020 e 2021, mas voltou a cair nos anos seguintes:

Gráfico 1 – Postagens no X (Twitter) no Dia do Orgulho LGBTQIAPN+

Fonte: Elaborado pela autora (2023)

Apesar da importância do posicionamento dos clubes, temos percebido que tais postagens são muito pontuais, limitando-se ao Dia Internacional do Combate à LGBTfobia (17 de maio) e Dia do Orgulho LGBTQIAPN+ (28 de junho). Muitas vezes, os clubes sequer mencionam as torcidas que têm feito um trabalho de luta e resistência nesse ambiente ainda tão marcado pela LGBTfobia, com postagens que apenas destacam a data e colocam cores relacionadas à bandeira LGBTQIAPN+. Dessa forma, uma agenda pautada por campanhas pontuais, apenas no mês de julho ou de maio, não é suficiente para combater a LGBTfobia no futebol. Identificamos que os coletivos querem e estão lutando por um espaço que realmente respeite as suas vivências, através de estratégias diversas como postagens nas redes sociais, encontros para discussão do tema e articulação com os clubes em busca de uma legitimação enquanto sujeitos que podem torcer. No entanto, apenas a articulação isolada desses coletivos não é capaz de promover mudanças, especialmente porque esse histórico de opressão e violência vem desde as primeiras práticas de futebol que sempre foi associado a algo extremamente viril e masculino, o que resultou, além do afastamento de pessoas LGBTQIAPN+, a proibição da prática esportiva por mulheres entre entre 1941 e 1979, o que reflete ainda hoje na invisibilidade e na falta de investimento na modalidade.

Figura 1 – Postagens de Cruzeiro, Flamengo e Palmeiras no Dia do Orgulho LGBTQIA+ 2023

Fonte: Redes sociais de Cruzeiro, Flamengo e Palmeiras

Apesar dessa (in)visibilidade, podemos citar exemplos de clubes que têm feito alguns esforços para contribuir com a luta por um futebol mais inclusivo. O Bahia, por exemplo, além de apoiar a torcida LGBTricolor em várias postagens, também tem feito uma série de iniciativas nos últimos anos voltadas para as pessoas LGBTQIAPN+. Segundo Bertoncello (2022), o Bahia articula e organiza pautas sociais através de diferentes estratégias discursivas, com campanhas contra a LGBTfobia, o racismo e o machismo, por exemplo. Em 2024, o Bahia foi um dos únicos times da Série A, ao lado do Fluminense, que se posicionou a favor de pessoas trans, no Dia Nacional da Visibilidade Trans (29 de Janeiro), apesar dos inúmeros comentários preconceituosos nas redes sociais de pessoas que acreditam que um clube de futebol não deve se posicionar sobre esse tipo de causa.

Figura 2 – Comentários de torcedores na postagem do Bahia sobre o Dia Nacional da Visibilidade Trans

Fonte: Instagram

Mas, muito além de postagens no Instagram ou no X, destacamos outras ações realizadas pelo Bahia que refletem esse compromisso com a luta LGBTQIAPN+. Em 2022, o clube aderiu ao Selo da Diversidade5, concedido pela Prefeitura de Salvador a empresas que assumem compromissos pela superação de toda forma de discriminação no mercado de trabalho, além de apoiar, em parceria com a LGBTricolor, o  1º workshop contra a homofobia no futebol6, promovido pelo Governo do Estado. 

Já em 20237, o clube esteve presente na Feira de Empregabilidade Trans8 realizada na Ufba (Universidade Federal da Bahia) com stand, cobertura audiovisual e infraestrutura de internet em parceria com a ITS, demonstrando apoio não só a uma luta por um futebol menos LGBTFóbico mas também, e principalmente, reforçando um compromisso com pessoas trans, travestis e transsexuais que enfrentam uma série de dificuldades e preconceitos para ingressar ao mercado de trabalho.

Portanto, não podemos deixar de destacar a importância das postagens dos clubes, tendo em vista que até poucos anos quase nenhum time falava sobre isso. Porém, reforçamos que, para além de campanhas e postagens, não podemos deixar de lado a proposição de ações práticas e efetivas para que essas pessoas tenham não só direito de torcer, mas de existir e de terem seus direitos e suas vivências respeitados. Percebemos, através de análises em andamento dos perfis dos coletivos, que tanto eles quanto a Canarinhos LGBTQ+ têm uma disposição imensa de contribuir nessa luta junto aos clubes, às federações e à CBF. No entanto, apenas a articulação isolada desses coletivos não é capaz de promover mudanças. Assim, precisamos de mais do que postagens e campanhas pontuais: precisamos de clubes que realmente se importem e se juntem a esses coletivos que lutam não só contra a LGBTfobia, mas contra o racismo e contra o machismo nas práticas esportivas e também na sociedade.


Índice

1 Raquel Souza é jornalista e mestranda em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. Integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Culturas Esportivas (Coletivo Marta). E-mail: souzacrafaela@gmail.com

2 Canarinhos LGBTQ. Acesso em: 01 jan. 2024.

3 Clubes brasileiros fazem homenagens ao Dia Internacional do Orgulho LGBTI. Acesso em: 15 out. 2023.

4 Clubes brasileiros se manifestam contra o preconceito no Dia Internacional do Orgulho LGBT. Acesso em: 15 out. 2023

5 Esporte Clube Bahia adere ao Selo da Diversidade | X (Twitter) oficial do Esporte Clube Bahia. Acesso em: 01 fev. 2024.

6 Diversidade em Campo: Salvador recebe 1º Workshop sobre diversidade no futebol; inscrições online | Aratu On. Acesso em: 01 fev. 2024.

7 Loja do Bahia é iluminada com as cores da bandeira LGBT no Dia Internacional do Orgulho | X (Twitter) oficial do Esporte Clube Bahia. Acesso em: 01 fev. 2024.

8 UFBA recebe Feira de Empreendedorismo e Empregabilidade LGBTRANS+ | Alô Alô Bahia. Acesso em: 01 fev. 2024.


Referências

ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “são bichas mas são nossas” à diversidade da alegria: uma história da torcida Coligay. 2018. Doutorado – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

ANJOS, Luiza Aguiar dos; PINTO, Maurício Rodrigues. Práticas torcedoras transgressoras no templo da virilidade: a experiência da Coligay. FuLiA/UFMG, v. 8, n. 1, 2023.

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Um currículo de masculinidades nos estádios de futebol. Revista Brasileira de História, v. 15, n. 44, 2010.

BERTONCELLO, Soraya Damasio. O futebol enquanto instância midiática da publicidade social: Uma análise do discurso das campanhas do Esporte Clube Bahia. 2022. 218 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Escola de Comunicação, Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul , Porto Alegre, 2022.

PINTO, Maurício Rodrigues. A “praga” da FlaGay e o “desbunde” guei no futebol brasileiro. Revista Brasileira De Estudos Da Homocultura, v. 1, n. 4, 2018.

PINTO, Maurício Rodrigues. Pelo direito de torcer: das torcidas gays aos movimentos de torcedores contrários ao machismo e à homofobia no futebol. 2017. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Ciências) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

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