O calor no futebol e uma centenária proibição de jogá-lo

No final de janeiro, o Huracán enfrentou o Talleres de Córdoba pelo atual torneio de futebol masculino da primeira divisão. O jogo começou às 17h. Questionando a naturalização de marcar partidas em datas e horários de altas temperaturas desfavoráveis ??à saúde dos jogadores, o jornal portenho Página/12 noticiou que a disputa ocorreu “sob um calor infame”. Embora sem fazê-lo explicitamente, a crônica considerava uma infâmia disputar partidas “sob um calor opressivo”, pois também caracterizava o clima daquela tarde de verão. Essa preocupação vem de antigamente e ressurge, com mais ou menos força, periodicamente. Há quase cem anos, em 30 de novembro de 1926, o Conselho Deliberativo do Município de Rosário resolveu a questão com uma decisão inédita, ousada e quase desconhecida: emitiu uma portaria proibindo os jogos da Liga Rosarina de Futebol nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro. O projeto de lei, proposto pelo jornalista esportivo e conselheiro do Partido Democrático Progressista Juan Dellacasa, argumentava que jogar futebol no verão colocava claramente em risco a saúde dos jogadores. Desta forma, foi “doloroso assistir a um jogo de futebol no calor, onde vinte e dois jogadores desempenham o seu papel quase exaustos pelo esforço sempre constante que a luta exige”. Isto, segundo Dellacasa, prejudicou tanto o futebol como os seus adeptos, uma vez que jogá-lo no verão exigia “um enorme excesso de energia que coloca o homem num nível de rebaixamento do seu valor físico-moral”. A minuta da portaria também contemplava os espectadores, principalmente aqueles que frequentavam as arquibancadas populares. Durante os jogos de verão, ocupavam “um lugar onde o sol lhes aparecia como o inimigo mais terrível. Suportar a violência dos raios solares constitui mais um atentado à saúde dos torcedores”. Tendo em conta espectadores e jogadores, para Dellacasa “o grande calor que irrompe nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro constitui um valor positivo e um argumento irrefutável para que este projeto de portaria seja sancionado”. Teve o apoio, entre outros, do prefeito Manuel Pignetto, higienista da União Cívica Radical, que levava a cabo um ambicioso plano de saúde. A imprensa de Rosário comemorou a nova portaria. Por exemplo, deplorando que os jogadores de futebol fossem obrigados a jogar no verão “para satisfazer apenas o desejo dos dirigentes e dos cofres dos vários clubes”, o jornal Democracia comentou que esta era “uma medida sábia”. Por outro lado, fazendo eco aos considerandos do projeto de portaria, insistiu que o futebol de verão era uma “prática bárbara” e que “a sua proibição era algo que se impunha como algo indispensável”. Invocando noções de saúde, proclamou que desta forma “se defende a saúde dos jogadores e, portanto, da população” e criticou, sem nomeá-las, outras cidades do país onde “não puderam ou não quiseram obter [uma situação semelhante proteção para seus filhos] por razões mesquinhas.” Embora tenha reconhecido que a implementação imediata da nova portaria acarretou dificuldades para a conclusão do atual torneio, felicitou Dellacasa, esclarecendo que a imprensa local lutou durante muitos anos pela proibição do futebol de verão. Atualmente, é improvável que uma entidade pública estabeleça a proibição da organização de festas durante o verão como fez o Conselho Deliberativo do Município de Rosário em 1926. Não há vontade política para fazê-lo, entre outras razões, porque tal proibição seria afetar negativamente numerosos interesses do negócio do futebol e também porque seria considerada uma interferência paternalista desnecessária no funcionamento das instituições do futebol e nas decisões autónomas dos jogadores de futebol e daqueles que assistem aos jogos. Isso porque, como disse Eduardo Galeano (1995), “à medida que [o futebol] se tornou uma indústria, baniu a beleza que vem da alegria de jogar só porque sim”. No entanto, aquela proibição de Rosário, eventualmente revogada, convida-nos a distorcer a marcação de uma data em condições de calor extremo, a refletir sobre a (in)conveniência de organizá-la e a imaginar condições organizacionais em que a saúde de todas as pessoas envolvidas seja protegida. A FIFA estabelece que em situação de calor extremo (definida como temperatura acima de 32 °C), as pausas para hidratação são obrigatórias nos minutos 30 e 75 da partida. Além disso, estipula que a decisão de suspender ou cancelar uma partida fica a critério de seus organizadores. A FIFPRO, sindicato global que representa os jogadores de futebol profissionais, considera que as diretrizes da FIFA “não são suficientes para proteger a saúde e o desempenho dos jogadores de futebol”. Portanto, sugere pausas para hidratação nos minutos 30 e 75 da partida quando a temperatura estiver entre 28 e 32°C e pausas adicionais para hidratação nos minutos 15 e 60. Para o FIFPRO, se a temperatura for superior aos 32°C as partidas devem ser canceladas e remarcadas. Obviamente, a FIFPRO propõe a proibição, embora com termos diferentes, de organizar jogos quando a temperatura ultrapasse os 32°C, qualquer que seja o mês do ano. Na era do aquecimento global, é uma proposta sábia. Dellacasa, que considerou o seu projeto de decreto como um “trabalho humanitário, que reflete, claro, um ato de justiça para com a nossa juventude desportiva”, concordaria com estes regulamentos, que tornariam impossíveis jogos infames e quentes. *Texto originalmente publicado pelo site El Furgón no dia 2 de fevereiro de 2024.

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