Por Nicolás Cabrera e Raquel Sousa (Observatório Social do Futebol – UERJ)
Conhecendo o contexto das relações produzidas pelo futebol em Pernambuco podemos inferir que as cenas de violência entre torcedores do Sport e Santa Cruz pelas ruas de Recife no dia 01 de fevereiro de 2025 foram tão previsíveis quanto evitáveis. Ao longo de toda a semana, houve provocações entre as torcidas, assim como o contato com as autoridades competentes, por meio da solicitação de escolta por parte de uma das organizadas do Sport e notificação, em ofício, do trajeto tomado por uma das organizadas do Santa Cruz. Porém, nada adiantou. As imagens de violência física e do ato de violência sexual em uma pessoa vulnerável circularam pela internet e foram divulgadas em diferentes jornais e programas esportivos — é necessário pontuar que nesse texto optamos por utilizar a classificação de violência sexual em razão de termos somente um vídeo curto da cena e por escolha consiente da não imputação de um crime antes da devida averiguação e do processo legal. Neste texto, vamos tentar distinguir as novidades e os padrões de repetição, entre a particularidade do caso e o usual das complexas dinâmicas de violências que predominam no futebol brasileiro.
As imagens viralizadas são tristes, impactantes e surpreendentes. Porém, o ocorrido no sábado passado em Recife, representa o tipo de confronto mais comum entre as dinâmicas de violência física ligadas ao futebol profissional masculino. Segundo o relatório Violências no Futebol Brasileiro, produzido pelo Observatório Social do Futebol, a maioria das ocorrências registradas em 2023 foram entre torcedores de times diferentes (47%) e de torcedores contra forças de segurança (25%). Outros dados pertinentes estão ligados aos locais das ocorrências. A maioria delas aconteceram fora dos estádios (70%); apenas 22% ocorreram dentro. Em resumo, a intensa briga entre os torcedores do Santa Cruz e Sport corresponde ao padrão de violência física mais predominante no Brasil: entre torcedores de clubes diferentes com um denso histórico de rivalidade, fora do estádio, antes do jogo e durante o trânsito das torcidas.
CABRERA, Nicolas; SOUSA, Raquel de Oliveira; SUDÁRIO, João Vitor Cardoso; BANDEIRA, Thalisson Inácio. Violências no Futebol Brasileiro: Relatório do Observatório Social do Futebol, N.1. Rio de Janeiro, FCS/UERJ, 2024. E-book. Disponível em: https://observatoriosocialfutebol.org/relatorio-violencias-no-futebol-brasileiro/
No ano de 2023, conforme o relatório já mencionado, o estado contou com sete ocorrências, figurando em 4% de casos em relação a outros estados brasileiros. O mesmo relatório também apresenta que, em 2023, o torcedor Lucas Gabriel Rosendo faleceu no estado em decorrência de agressões. De acordo com os dados preliminares, que serão apresentados no relatório que será publicado em 2025, em 2024 foram catalogados dez episódios envolvendo violências no futebol em Pernambuco. Ainda não temos a porcentagem equivalente em relação aos outros estados; no entanto, é possível notar o aumento da violência no estado no recorte temporal de 2023 e 2024.
Para além do aumento na quantidade de casos no estado de Pernambuco e o fato que a briga entre os torcedores do Santa Cruz e Sport corresponde ao padrão de violência física mais predominante no Brasil, as cenas do dia 01 de fevereiro de 2025 trouxeram uma triste novidade: a violência sexual filmada e viralizada a um torcedor do Sport. Um tipo de violência incomum entre os torcedores organizados. Porém, a excepcionalidade da situação não tira o fato que ela seja possível dentro dos universos morais e emocionais das torcidas organizadas e do futebol.
Organizadas de Santa Cruz e Sport entraram em conflito antes de jogo no Recife no sábado (1º) — Foto: Reprodução/WhatsApp
Em primeiro lugar, porque há uma possibilidade sócio-tecnológica que o permite: todo mundo tem uma câmera no seu bolso. E as torcidas organizadas, que em algum momento foram mais reservadas para filmar sua cotidianidade, hoje não são mais. Com contas próprias de Facebook, Instagram e o X (antigo Twitter), o mundo digital virou mais um campo de batalha, como são a pista e a arquibancada.
Em segundo lugar, está o tipo de masculinidade que muitos componentes das torcidas organizadas constroem. Nesse protótipo de “homem” que valora positivamente a virilidade, a hipersexualidade, a disposição para luta, o machismo, a homofobia e a dominação de aquilo que considera inferior, a utilização da força física e do linchamento aparece como um recurso legitimo de demonstração de força e poder. Vencer ao rival é subjugá-lo, humilhá-lo… violentá-lo.
Em terceiro lugar, temos que admitir que episódios de violência sexual e estupro no futebol têm um historico que excede as relações das torcidas organizadas. Ao longo de anos, acompanhamos diferentes episódios de violências sexual envolvendo o contexto social do futebol, vimos diversos casos de estupros praticados por jogadores e/ou técnicos, casos que sempre envolveram mulheres, polêmicas e esquecimentos desses atos. Infelizmente, o futebol como um todo, alimentado daquele ethos masculino, é um território fertil para uma cultura do estupro.
A reflexão, em termos comparativos, sobre os padrões e distinções desse caso específico com outros episódios de violência no futebol nos leva a pensarmos em um caminho possível para reduzirmos os episódios violentos nesse ambiente. Como ponto de partida, podemos afirmar que as políticas públicas que as autoridades de Recife e Pernambuco estão querendo implantar, não são uma solução eficaz. A violência brota como consequência de uma cadeia de erros.
Para entender melhor as particularidades do caso, recomendamos a matéria publicada por Adriano Costa [1], ex-coordenador regional da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg). Nesta reportagem, o autor detalha o histórico de irresponsabilidades que opera como pano de fundo do acontecido em Recife. Também pontua uma questão fundamental que não foi mantida enquanto política pública: a preservação de um grupo de trabalho onde havia espaço para a participação, diálogo e construção de uma cultura de convivência entre as torcidas. Demonstrando uma desvalorização de um trabalho preventivo e a permanência de políticas que buscam por soluções estanques e milagrosas, mas que não são eficazes.
[1] Porque as autoridades, a FPF-PE e os dirigentes de clubes são culpados pela violência entre torcedores. Disponível em: https://marcozero.org/porque-as-autoridades-a-fpf-pe-e-os-dirigentes-de-clubes-sao-culpados-pela-violencia-entre-torcedores/>. Acesso em: 04 de fev. de 2025.