O mundo do surfe precisa falar sobre Fernando Aguerre

Por João Pedro Medeiros

No dia 31 de julho de 2024, o presidente da International Surf Association (ISA), o argentino Fernando Aguerre, estava acompanhando as provas de surfe dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 no Taiti, a mais de 15 mil quilômetros da capital francesa, e compartilhou um vídeo em suas redes sociais. No vídeo, Aguerre tem em mãos a edição do jornal Tahiti Infos, do dia anterior, 30 de julho, cuja capa estampa aquela que talvez seja uma das fotografias esportivas mais emblemáticas dos últimos tempos. A imagem é a do brasileiro, tricampeão mundial, Gabriel Medina comemorando no ar, ao lado de sua prancha, o tubo que acabara de completar em uma densa onda de Teahupoo (Taiti) contra o japonês Kanoa Igarashi. O feito lhe rendeu a maior nota olímpica do surfe até o momento: incríveis 9.90(1).

Na mensagem aos seguidores, o presidente da entidade, apontando para a matéria, diz: 

Incrível, não? Há registros dessa imagem ao redor de todo o planeta. Estou tão feliz! Imagine: você sonha, sonha, sonha, sonha… E um dia você acorda e a realidade é o seu sonho. Realidade e sonho são a mesma coisa. Mas, nesse caso, é melhor ainda, porque Teahupoo serve ondas maravilhosas […]. Agora, o mundo inteiro reconhece o valor do surfe(2).

Com a filmagem gravada na vertical, Aguerre posa com um chapéu de palha, com detalhes florais azuis, estampado com corações e coroado com uma flor; no pescoço, ao menos três colares são ostentados; utiliza um casaco cinza escrito “Paris 2024” no peito; e veste uma blusa vermelha desbotada em que figura os dizeres “Duke’s Dream” à frente de um surfista sorridente. 

O sonho que se refere a camisa é o de Duke Kahanamoku (1890-1968), havaiano nativo e reconhecido como “pai do surfe moderno”. Duke foi medalhista olímpico por cinco vezes na natação: três ouros e duas medalhas de prata. Nos Jogos Olímpicos de Verão de 1912, realizado em Estocolmo, Duke manifestou seu anseio ao Comitê Olímpico Internacional (COI) de ver o surfe incluso aos esportes olímpicos. 104 anos depois, no dia três de agosto de 2016, em sessão histórica, o sonho de Duke se tornou realidade (Zeni e Brasil, 2021). 

Fernando Aguerre em Teahupoo
Fernando Aguerre em Teahupoo. | Fonte: Instagram @fernandoaguerre

Na 129ª Sessão do COI, realizada no Rio de Janeiro, palco daquela edição dos Jogos, o alemão Thomas Bach, presidente da organização, anunciou para os Jogos de Tóquio 2020 – adiado para 2021, por conta da pandemia da Covid-19 – a inclusão de cinco novas modalidades: surfe, beisebol, caratê, skate e escalada.

Na atualidade, as figuras de Duke e Fernando se tocam. Hoje, é concedido a Aguerre um papel de destaque no processo que se poderia nomear de olimpídização da prática do surfe. A propósito, a história do surfe moderno se desenvolveu em torno de uma série de consensos concernentes às conquistas, a percepção da passagem do tempo em “eras” e a existência de tensões inerentes a esse esporte. Notadamente, tais critérios de avaliação coletiva se materializaram nas mudanças tecnológicas (pranchas, quilhas, etc), modificações culturais (crowd, localismo etc) e também nas transformações de desempenho (performance, manobras “agressivas” surfe etc.) (Brown e Ford, 2006). 

Comumente, a história do surfe parece estar associada a uma série de personagens importantes à constituição e reprodução do surfe: Duke Kahanamoku, Tom Blake, Mike Dora, Gerry Lopez, Nat Young, Kelly Slater e, mais recentemente, Gabriel Medina, Ítalo Ferreira, dentre outros. Fernando Aguerre, o sexagenário que está há 30 anos à frente da Associação Internacional de Surfe, pode e deve ser visto como uma dessas figuras “mitológicas” que compõem o panteão de figuras ciclópicas do surfe.

Fernando Aguerre nasceu em 1957 em Mar del Plata, uma cidade localizada a mais de 300 quilômetros de Buenos Aires, em uma família de classe média. Entre os anos 70 e 80, Fernando começou a organizar eventos e a trabalhar como DJ. Nesse período, com seu equipamento de som, passa a tocar, nas areias da praia de sua cidade, músicas listadas como proibidas pela ditadura militar argentina, que se iniciou em 1976. No início de sua “carreira” no surfe, Fernando foi ao mesmo tempo presidente de uma associação de músicos de surf music e presidente de uma associação de skate. Não tardou para ele e o seu irmão, Santiago, começarem a promover pequenos campeonatos de surfe em Mar del Plata e a abrirem, pouco depois, uma surf shop

Em 1984, após concluir a faculdade de Direito, Fernando se mudou para a costa oeste dos Estados Unidos da América (EUA) a convite do seu irmão, que havia partido para os EUA três anos antes. Em São Diego, na Califórnia, os Aguerre uniram forças e, com a experiência no mercado do surfe, criaram, com apenas US$ 4.000 de investimento inicial, a empresa internacionalmente conhecida Reef, dedicada a produzir sandálias e chinelos praianos. Foi somente com o início da publicação de anúncios em importantes revistas de surfe, como a Surfing, que a companhia passou a ser conhecida e consumida internacionalmente. Em 2004, os irmãos venderam a empresa e Fernando Aguerre passou a se dedicar à filantropia e a sua gestão na ISA. 

Quanto ao posto de presidente da ISA, é preciso retroceder ao ano de 1994, momento em que Aguerre ascendeu ao cargo. Àquela altura, ele já era presidente da Associación Panamericana de Surf (APAS), instituição ao qual ajudou a fundar e presidiu até 2002. Não havia impedimentos estatutários em ambas as entidades para o ingresso de sua candidatura junto a ISA e, nas eleições para aquele quadriênio, a chapa de Fernando angariou 16 votos dos 31 possíveis. O resultado de sua primeira eleição contrasta e muito com o da última, em 2022, quando Aguerre foi reeleito unanimemente para o seu décimo mandato.  

Apenas três anos após o ingresso de Aguerre na entidade, em 1997, a ISA já conseguira o seu reconhecimento olímpico enquanto federação internacional de surfe. No entanto, seria necessário mais de uma década para que o surfe fosse, de fato, levado a sério pelo Comitê Olímpico Internacional. Pode-se dizer que a eleição em 2013 do ex-esgrimista alemão, Thomas Bach, ao posto máximo do COI foi fundamental para a introdução do surfe nas Olimpíadas, assim como para o beisebol, caratê, skate e a escalada. Somente um ano depois da posse do novo presidente, em 2014, o Comitê Olímpico aprovou por unanimidade, na 127ª sessão da entidade, uma moção específica que deu à cidade anfitriã o poder de solicitar a inclusão de novos esportes, como parte das reformas feitas sob a Agenda Olímpica de 2020(3).

A “troca de guarda” no comando do COI foi a oportunidade que Aguerre aguardava há anos. A ascensão de Bach, sob o lema “mudar ou ser mudado”, criou as condições necessárias para que o discurso a favor da revitalização do movimento olímpico se encontrasse ao antigo “sonho de Duke”, reformulado e propagado à imagem de Aguerre. Para a ISA, isso significou lutar pela inclusão do surfe em vários eventos multiesportivos regionais e continentais ao longo de 2015 para chamar a atenção dos stakeholders olímpicos(4). Nesse mesmo ano, o Comitê Organizador de Tóquio 2020 fez um convite à ISA para que candidatasse o surfe como um dos novos esportes.

Thomas Bach e Fernando Aguerre nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 | Fonte: Documentário The impossible wave

Em entrevista concedida em 2023, Aguerre analisou o período que antecedeu a fatídica 129ª Sessão do COI, quando o Comitê anunciou a inclusão dos cinco novos esportes: “Eu realmente não precisava empacotar novamente o esporte. Nós só precisávamos apresentar o esporte e torná-lo mais conhecido. Para os europeus no movimento olímpico, o surfe não estava realmente diante de seus olhos”(5). Na mesma entrevista, ele apresentou suas impressões acerca das Olimpíadas antes da posse de Bach:

Nos primeiros 15 a 18 anos da minha luta para levar o surfe as Olimpíadas, senti que o movimento olímpico estava muito cansado. Ocasionalmente, um novo esporte como vôlei de praia aparecia, mas isso já fazia parte da federação de vôlei. Uma coisa é trazer uma nova disciplina de uma coisa já estabelecida, mas outra é trazer um novo esporte e federação, e certamente uma cultura completamente diferente(6).

Discursivamente, o “cansaço” do movimento olímpico contrasta com o tipo de ethos sistematicamente atribuído ao surfe: algo jovial, “descolado”, tal qual Fernando em sua indumentária e formas de ser, detentor não somente de qualidades esportivas, mas de um lifestyle. Especificamente sobre isso, Aguerre disse: “Aqui, você tem um esporte como o surfe que vem com música, cultura, moda, estilo de vida, mensagens ambientalistas – muitos valores que fazem parte do mundo hoje”(7).

O apelo às imagens de juventude de Aguerre se coaduna com o espírito de renovação defendido pelo Conselho Executivo do COI para o futuro dos Jogos. Resultado indelével disso foi a aprovação por unanimidade do COI em 2021 da Agenda 2020+5 com foco em Jogos sustentáveis e valorização dos esportes virtuais(8). O foco no futuro também se caracteriza pela necessidade institucional de tornar os Jogos Olímpicos economicamente viáveis e atrativos para as novas gerações de consumidores.

De qualquer forma, passado os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, e os de Paris, em 2024, têm-se também a confirmação da presença do surfe na edição dos Jogos de 2028, que ocorrerá em Los Angeles, na Califórnia. Com a confirmação, o esporte finalmente entrou no quadro permanente das Olimpíadas. Com isso, os efeitos de se tornar um esporte olímpico são amplamente sentidos pelo que podemos denominar “campo social do surfe”.

Como defende Bourdieu, o campo das práticas esportivas é o lugar em que se colocam em jogo o monopólio da definição legítima de tal ou qual esporte, assim como de suas funções legítimas: amadorismo vs. profissionalismo; esporte enquanto prática vs. esporte enquanto espetáculo etc (Bourdieu, 2003, p. 159). Fernando Aguerre, ao se erigir como um dos principais expoentes da atualidade no que diz respeito a institucionalização da prática e se vincular a determinados agentes cruciais aos seus objetivos, ajuda a dilatar a posição do surfe como esporte, capaz de, a um só tempo, criar e suprir uma oferta destinada a encontrar uma certa procura social (Ibid)

Por fim, o culminar do surfe no quadro permanente dos Jogos Olímpicos faz reforçar a relação ofertaprocura dentro dos marcos de um mundo globalizado e capitalista. E, ao mesmo tempo, faz concentrar sobre a figura de certos agentes o “capital de realização” de determinados feitos: Duke Kahanamoku, Fernando Aguerre e muitos outros que ainda virão.

(Com informações retiradas do documentário The impossible wave: Fernando Aguerre’s quest for Olympic surfing (2022))


Referências

BROWN, David; FORD, Nick. Surfing and Social Theory: experience, embodiment and narrative of the dream glide. London: Routledge, 2006.

BOURDIEU, Pierre. “O que é ser esportivo?”. In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 2003.

ZENI, Alexandre e BRASIL, Vinicius. O surfe enquanto esporte contemporâneo: do “lifestyle” aos jogos olímpicos. In: Silva, Bruno; Palmeira, Marcus (Org.). Surf Contemporâneo. CRV, 2021.

Notas de rodapé

[1] Antes da disputa com o atleta japonês, Medina foi o primeiro na bateria composta pelo japonês C. O’Leary e pelo salvadorenho B. Perez; em seguida, na rodada eliminatória. Nas Quartas de Final, Medina passou pelo também brasileiro João Chianca. Nas semifinais, o atleta caiu para o australiano Jack Robinson, após ficar 17 minutos sem surfar uma onda em função das condições do mar naquele momento – acontecimento que, até o presente momento, gerou um grande debate em torno da imprevisibilidade do mar e o processo de assimilação das piscinas de onda pela empresa esportiva. Na disputa pelo bronze, o surfista brasileiro superou o peruano Alonso Correa e garantiu sua primeira medalha olímpica. Na edição Paris 2024, o ouro olímpico do surfe masculino foi para o francês Kauli Vaast e a prata foi para o australiano Jack Robinson.

[2] Disponível em: https://www.instagram.com/reel/C-HChFyvjMH/?igsh=MTd3M3R5NHI3MDBjZQ%3D%3D. (Acessado em 05/08/2024).

[3]  Informações retiradas de: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2014/12/por-unanimidade-coi-aprova-agenda-com-40-mudancas-nas-olimpiadas.html. (Acessado em 29 de agosto de 2024). 

[4]  Informações retiradas de: https://www.sportspromedia.com/insights/features/isa-president-fernando-aguerre-surfing-olympics-ioc-funding-sup-la28-interview/. (Acessado em 29 de agosto de 2024).

[5]  Informações retiradas de: https://www.sportspromedia.com/insights/features/isa-president-fernando-aguerre-surfing-olympics-ioc-funding-sup-la28-interview/. (Acessado em 29 de agosto de 2024).

[6] Ibid. 

[7] Ibid. 

[8] Informações retiradas de: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/2014/12/por-unanimidade-coi-aprova-agenda-com-40-mudancas-nas-olimpiadas.html. (Acessado em 30 de agosto de 2024). 

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