O retorno do atacante Benzema à Seleção Francesa de Futebol e suas implicações

Por Carolina Cardoso, Júlia Sampaio e Luana Pina

A Seleção Francesa Masculina de Futebol é muito conhecida por suas atuações dentro de campo, porém sua popularidade alcança questões extracampo. A Seleção, para além de suas vitórias e histórico, é muito conhecida também pelas contradições no tratamento a seus jogadores e o que eles representam, muitas vezes conflitando com os posicionamentos da população e dos governantes do país. Posteriormente à não classificação nas edições de 1990 e 1994, a equipe transformou-se em um reflexo da questão migratória vivida há séculos pela por essa nação europeia, modificando também seu desempenho, disputado desde então três finais do campeonato e triunfado por duas vezes, em 1998 e 2018.

No entanto, o que tais vitórias representam para a sociedade e para a política do país é uma longa discussão, para a qual o presente artigo busca contribuir por meio da problematização do caso do atacante Karim Benzema, atual vencedor da Bola de Ouro (como melhor jogador da temporada) e emblemático das questões contemporâneas de imigração e identidade nacional francesa.

Fonte: Placar

Sem uma definição consensual jurídica no âmbito internacional, migração, segundo a Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas, pode ser entendida pela designação de qualquer pessoa que deixa seu lugar de residência habitual a fim de se estabelecer temporária ou definitivamente em outra localidade, atravessando fronteiras internacionais ou não e por razões diversas.

A França possui cerca de 68 milhões de habitantes, sendo por volta de 8,5 milhões migrantes internacionais (Migration Data Portal, 2020). Ao analisar as ondas migratórias ocorridas no país, é possível elencar a pobreza e as disparidades econômicas entre os Estados europeus, a descolonização e a globalização, a partir dos anos 80, como as principais causas para a migração.

O fluxo de imigrantes possui origem em diversos países, principalmente europeus e africanos, construindo, assim, a população multinacional existente atualmente na França. Contudo, o que se observa não é uma exaltação dessa multiculturalidade, visto que não há grande identificação entre os franceses com os valores e costumes que passaram a compor significativamente a população, como, por exemplo, elementos muçulmanos. Outro aspecto observado refere-se ao tratamento de indivíduos nascidos em território francês como estrangeiros pelo fato de serem descendentes de imigrantes, complexificando ainda mais esta questão.

No tocante à relação entre a migração e o esporte, existe o esportista imigrante que representa a imagem de sucesso, como o ex-jogador de futebol e técnico Zinedine Zidane, e o imigrante que representa esportistas nas associações da classe trabalhadora da França, que compreende grupos de refugiados e imigrantes de ex-colônias francesas. A migração argelina é um exemplo que confere um melhor entendimento para o recorte aqui pretendido, já iniciada enquanto o país ainda era colônia francesa quando os trabalhadores nacionais eram empregados na metrópole.

Com o passar das décadas, se tornou um dos principais fluxos migratórios em direção à França, mantendo preservados seus hábitos e costumes identitários. Entretanto, apesar de serem vistos como fonte de mão de obra, ao ajudarem o país no restabelecimento pós-Segunda Guerra Mundial, os imigrantes passaram a ser enxergados, de forma negativa, como uma comunidade numerosa de estrangeiros. A partir da década de 1970, a lei francesa para imigração torna-se mais restrita e as relações com o Estado argelino oscilam, aproximando ou distanciando-os, de acordo com variantes como o terrorismo e crises econômicas. Em resumo, os argelinos e outros grupos estrangeiros que vivem na França hoje ocupam lugar à margem na sociedade francesa.

Assim, a imigração argelina representa uma parte da história francesa e uma parcela importante da sociedade, não somente em termos econômicos, mas políticos e culturais. Entretanto, a questão migratória ainda resulta em condições discriminatórias para muitas dessas populações, mesmo que elas representem um componente essencial para o desenvolvimento do Estado francês.

Importante citar que o esporte, em sua vertente profissional, é afetado pelo movimento migratório, uma vez que diversos clubes, principalmente aqueles sediados na Europa, atuam de modo análogo à divisão mundial do trabalho na medida em que jogadores são descobertos em países africanos e latinoamericanos como “jovens talentos” e são levados a esses times europeus. Cabe salientar, em torno dessa problemática, a relevância que os estrangeiros possuem para o esporte francês, principalmente para a Seleção Masculina de Futebol, mas que, ainda assim, estão sujeitos a uma discriminação política e social.

De acordo com o sociólogo Zygmunt Bauman, a identidade se caracteriza pelo seu processo fluído de construção, portanto não é fixa nem imutável, sendo passível de transformações ao longo do tempo. Dessa forma, tanto identidade quanto pertencimento são conceitos revogáveis uma vez que estão ligados aos indivíduos e suas trajetórias. Importante frisar também que, ao longo da história, esses conceitos também foram motivo de disputa ao serem percebidos como “ameaçados” por um inimigo construído. A partir do surgimento do Estado-Nação e do conceito de soberania, surge a ideia de identidade nacional, em que a identidade individual passa a ser influenciada e sobreposta por uma ideia de identidade coletiva coesa, que se define como uma resposta à instabilidade do pertencimento. A ideia de uma identidade nacional não é algo natural ao indivíduo, mas sim desenvolvido pelo aparato moderno do Estado como uma tarefa que estimula seus membros a agir pela manutenção dessa identidade coletiva. Dessa forma, a identidade nacional é um fenômeno de contínua renovação, por meio do qual o indivíduo escolhe ativa e diariamente ser parte de um grupo nacional. 

Stuart Hall (2006) entende que a cultura nacional é um modo de construir uma narrativa que influencia e organiza as ações e a concepção sobre o próprio indivíduo, atuando sobre a sociedade como um foco de identificação e um sistema de representações culturais. Dessa forma, o sentimento de pertencimento e identificação pela nação ocorre a partir da transmissão desse discurso para novas gerações e como essas novas gerações atribuem sentido a ele. Entretanto, a ideia de unificação da identidade cultural através da cultura nacional está sujeita a questionamentos, sobretudo pelo fato de que a maioria das nações têm culturas diferentes oriundas dos fluxos migratórios e da troca cultural entre povos.

A despeito de unificada politicamente, uma sociedade pode ser composta por diferentes grupos étnicos, e, portanto, a cultura dita como nacional não consegue atingir a todos. Além disso, o fenômeno da globalização tem como consequência a geração de um conflito entre a permanência das identidades nacionais e a absorção de novos hábitos, valores e elementos culturais devido à diminuição das fronteiras físicas e temporais que aumentam exponencialmente o nível de influência entre diferentes culturas. Portanto, é possível observar um declínio das identidades nacionais em novas identidades híbridas.

O futebol facilmente pode ser observado como um fenômeno afetado pela globalização, descrito como o esporte mais popular do mundo e que mobiliza diversos sentimentos, inclusive o de pertencimento. No âmbito internacional, o sentimento de pertencer pode ser observado, principalmente, pelas seleções nacionais como o mais alto grau de representação patriótica dentro do esporte. A disputa por campeonatos internacionais como a Copa do Mundo ilustra o poder de coesão do futebol quando une diferentes pessoas a torcer, unicamente, pelo seu país no torneio. Como grande fenômeno social que é, o esporte está sujeito aos impactos das transformações que sociedades ao redor do globo enfrentam, como dito anteriormente, tais como os movimentos migratórios ocorridos no decorrer da história da humanidade.

O papel outrora interpretado pela França de potência imperialista a torna uma comunidade de destino preferencial para milhões de migrantes, seja por vínculos históricos ou linguísticos. Os impactos das imigrações vivenciadas pela França em sua seleção nacional se confundem com o próprio começo da jornada desse país na Copa do Mundo, tendo em vista a crescente presença de jogadores de ascendência, em sua maioria, árabe e africana. “Black, blanc, beur” (Negros, Brancos e Árabes) é a definição dada à geração de campeões do mundo de 1998 e é um dos reflexos da forte miscigenação presente na sociedade francesa, sendo possível entender a Seleção como um retrato da nação.

Esse fato resulta em uma discussão dentro do país a respeito do impacto migratório na ideia de identidade nacional. A França é um dos países do mundo com maior porcentagem de população imigrante e descendente, o que faz com que a identidade francesa, ao longo dos anos, passe a contemplar diferentes origens, cores, etnias e religiões para além das originárias céltica e romana.

Fonte: Trivela

A fim de entender as mudanças no futebol francês vale mais uma vez destacar a ligação entre as ex-colônias francesas e sua antiga metrópole, uma vez que essa troca resultou em modificações sobre o que tradicionalmente se associa ao “ser francês” . O ponto central dessa discussão gira em torno do conceito de identidade nacional e da nacionalidade, pois o futebol, bem como o esporte em geral, pode ser considerado um elemento chave para compreender o sentimento de pertencimento nacional dos imigrantes e seus descendentes na França e no mundo.

Embora o esporte desempenhe uma função de coesão social e pertencimento, vale destacar que também é um reflexo das contradições existentes em uma sociedade. No caso do futebol francês, a Seleção é frequentemente alvo de ataques de cunho racista e xenofóbico, falas essas que podem ser representadas, por exemplo, pelo discurso do político da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, que afirmou que a seleção campeã de 1998 era “artificial” e que não refletia a “verdadeira” identidade nacional francesa. Entende-se, assim, que a fala do político não consta como uma opinião aleatória e descolada da realidade francesa, mas, sim, como uma dificuldade presente em tal sociedade de assimilar, como parte da identidade nacional, as variadas culturas, etnias, histórias e religiões presentes na França como parte de uma identidade nacional.

O autor Stuart Hall (2006) compreende que a identidade nacional é, muitas vezes, baseada na concepção de um povo originário, conferindo uma ideia de imutabilidade e homogeneidade ao desenvolvimento nacional, contudo essa ideia é, para o autor, um mito fundacional.

A chegada constante de imigrantes ao país traz consigo novos elementos culturais, étnicos e históricos a serem adicionados à realidade francesa, inclusive no seu futebol, expresso na sua Seleção que conta com uma face multicultural devido ao seu grupo miscigenado. Em 2018, muitos jogadores possuíam origens em antigas colônias francesas; no entanto, nota-se uma certa resistência de parte da população em aceitar uma identidade multicultural francesa, não apenas no futebol como também em outros âmbitos. Um grande exemplo disso é o relacionamento com o islamismo que, apesar de ser a segunda religião mais praticada em solo francês, não possui o status de um elemento cultural “tipicamente francês”.

Fonte: Extra

Desse modo, nota-se que, devido aos embates existentes nas questões culturais e étnicas e ao seu respectivo relacionamento complexo com a sociedade, a própria seleção francesa se constitui em um objeto político. Quando detentora de campanhas vitoriosas, é instrumentalizada como o exemplo de sucesso de um país culturalmente diverso e integrado, mas, quando seus resultados em campo são negativos, é apontada como uma falha na representação de sua comunidade nacional, atribuindo seus erros à presença da diversidade.

 Como dito anteriormente, a opinião pública a respeito da seleção pode ser entendida como um ciclo de “vaivéns”, que transitam entre a identificação nacional com os bleus e o incômodo com o seu caráter multiétnico e multicultural. Um dos exemplos desses atritos é evidenciado, sobretudo, na exclusão de Karim Benzema da equipe nacional. Descendente de argelinos e comumente envolvido em polêmicas, o jogador sugere, em uma entrevista concedida ao jornal espanhol Marca, que sua exclusão ocorreu devido a existência de um lobby racista, embora a alegação oficial da Federação Francesa de Futebol seja o seu suposto envolvimento em um esquema de chantagem e extorsão.  

Karim Mostafa Benzema é nascido e criado em Terraillon, na comuna de Bron, subúrbio de Lyon. Fez sua estreia como profissional em 2005 no time de sua cidade natal, onde permaneceu por cinco anos. Desde o início teve ótimas performances na Liga dos Campeões da Europa e nos jogos da primeira divisão do futebol francês, tornando-se rapidamente artilheiro e um dos jogadores mais bem pagos do país. Em 2009, Benzema foi vendido ao Real Madrid e virou coadjuvante no clube espanhol, apesar da boa relação com os companheiros.

A partir de sua ida para o time espanhol, o jogador passou a se envolver em polêmicas extracampo. Uma delas envolve a questão de que Benzema não canta a Marselhesa, hino nacional francês, em protesto à xenofobia presente em alguns de seus versos, postura essa que incomoda profundamente o país.

Além de não cantar o hino, o jogador causou fúria na extrema direita francesa ao realizar um gesto ambíguo durante um clássico entre Real Madrid e Barcelona. Antes do jogo, que estava sendo realizado dias depois do atentado terrorista em Paris no ano de 2015, o hino francês tocou no estádio e o atacante foi visto cuspindo no chão após a execução. Esse gesto foi interpretado por alguns como uma forma de desprezo pelo país.

Outra polêmica envolve a sua exclusão da seleção francesa mencionada anteriormente. Benzema justificou sua ausência na Eurocopa de 2016 como decorrência das “pressões” que o técnico Didier Deschamps teria sofrido de uma “parte racista da França”. O comentário foi muito malvisto, uma vez que o afastamento ocorreu devido ao seu envolvimento no caso de seu ex-companheiro Mathieu Valbuena. Na ocasião, Benzema foi acusado de extorsão e chantagem para não divulgar um vídeo com conteúdo erótico do meia, e a investigação fez com que ele ficasse suspenso até o encerramento do caso. O atacante regressaria à seleção no ano de 2020, mas, mesmo com pedidos de seu retorno vindo de figuras importantes como Zidane e Larqué, sua relação com a sociedade francesa é complexa.

Karim Benzema é produto de muitas histórias. Nunca foi um queridinho do país, uma vez que jamais se submeteu ao “comportamento francês”: é muçulmano praticante, não bebe álcool, observa obedientemente o Ramadã. Além disso, é introvertido, não costuma dar entrevistas e sempre viveu muito afastado do grande público francês. O jogador crescido na periferia de Lyon é o retrato de como a França ainda não sabe como lidar com sua população composta por imigrantes e seus descendentes que redesenham a identidade cultural do país.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2005.

DE ANDRADE, Rodrigo C. Non seulement les bleus: a seleção francesa de futebol, o conceito de identidade nacional e seus impactos na política sobre imigração de Emmanuel Macron. Portal de Trabalhos Acadêmicos, v. 5, n.2, 2018.

GASPARINI, William. Sport and Migration in France. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Petra-Giess-Stueber/publication/263374546_Sport_-_Integration_-_Europe_Widening_Horizons_of_Intercultural_Education/links/561238b308aec422d11736e1/Sport-Integration-Europe-Widening-Horizons-of-Intercultural-Education.pdf#page=86> Acesso em: 6 out 2022

GIULIANOTTI, Richard. O Esporte do século XX: futebol, classe e nação. In: Sociologia do Futebol. Nova Alexandria, 2002. Cap 2.

HALL, Stuart. As culturas nacionais como comunidades imaginadas. A Identidade Cultural na pós-modernidade, v.3, 2006.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Identidades em campo: discursos sobre a atuação de jogadores interculturais de origem africana e antilhana na seleção francesa de futebol. Revista de História (São Paulo), p. 395-425, 2015.

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