Infantilizar e depreciar, ridicularizar, humilhar, zombar, caluniar, difamar, demonizar, bem como sexualizar ou, alternativamente, dessexualizar, silenciar, evitar, envergonhar, culpar, ser paternalista, condescendente e outras formas de tratamento que são desdenhosas e depreciativas em contextos sociais específicos: esses são alguns exemplos de ações, comportamentos e posturas elencados por Kate Manne no livro Down Girl: The Logic of Misogyny , para descrever a hostilidade misógina.
Entre os diversos cenários sociais em que esses movimentos podem ser identificados, nos atentamos à representação de mulheres no jornalismo esportivo e em como o aprofundamento do conceito é capaz de nos indicar a forma como a misoginia, enquanto uma propriedade do ambiente social que busca punir como mulheres que fogem dos padrões definidos para a feminilidade, atuosas e se revelaram marcantes na forma como a imprensa esportiva tratou a pauta do futebol feminino ao longo da história.
Machismo ou misoginia?
Manne (2018) propõe diferenciações entre as noções de machismo/sexismo e misoginia. Basicamente, para o autor, o primeiro deve ser entendido como o ramo “justificativo” de uma ordem patriarcal que consiste na ideologia cuja função geral seria de racionalizar e incluir as relações sociais desiguais. Já a misoginia, nessa visão, se situa no âmbito da “aplicação da lei” dessa ordem patriarcal encarregada de policiar e fazer cumprir as suas normas e expectativas regentes.
A autora acrescenta que o sexismo atua naturalizando as diferenças sexuais para incluir os arranjos sociais de dominação masculina, fazendo-os parecer inevitáveis ??ou retratando pessoas que tentam resistir como lutar uma “batalha perdida”. Se a ideologia sexista envolve suposições, teorias, estereótipos e narrativas culturais mais amplas que representam homens e mulheres como significativamente diferentes, é fato que podemos encontrá-la em diversos registros do jornalismo esportivo – assim como veremos adiante com a misoginia.
Dessa forma, pode-se dizer que o machismo/sexismo atua diferenciando homens e mulheres, sustentando um sistema discriminatório com base no sexo e no gênero. Já a misoginia, além de diferenciar, ainda busca punir as mulheres consideradas mais ou fora dos padrões definidos para a feminilidade.
A misoginia, suas funções sociais e o jornalismo esportivo
Para definir misoginia, a etimologia do termo se mostra válida. Isso porque sua raiz grega remete às partículas miseó , que pode ser traduzida como odiar, e gyné , cujo significado seria mulher. A união desses sentidos é uma palavra que define o ódio, a repulsa ou a aversão às mulheres.
Conforme elabora Patou-Mathis (2022), por séculos, os textos sagrados de diversas religiões, tanto monoteístas quanto politeístas, deram base para que teólogos, cientistas e filósofos decretassem que as mulheres eram inferiores “por ordem divina” e “por natureza”. Esperanza Bosch, Victoria A. Ferrer e Margarita Gili (1999) apontam que as justificativas eram de ordem tanto religiosas quanto biológicas e pseudocientíficas, e um dos olhares apresentados por elas está no primeiro âmbito: a herança de Eva.
Lembremos do livro bíblico Gênesis, no qual há a narração da história de Eva que, causada pela serpente, pecou e convenceu Adão a fazer o mesmo. Com a descoberta do ato de traição, Deus expulsou os dois do Paraíso, os amaldiçoou e também a seus descendentes. Dessa forma, todas as suas filhas “nascerão com seu estigma, lembremo-nos: a mulher é a porta do diabo. Este será o argumento da Igreja Católica na hora de pregar sobre a maldade das mulheres e a necessidade de que estejam sempre sujeitas aos homens” (Bosch; Ferrer; Gili, 1999, p. 10). Aqui, vale ressaltar que, embora o cristianismo seja um ponto importante para a manutenção da misoginia, não se trata de uma invenção religiosa.
Na década de 1940, no Brasil, com a popularização da formação dos tempos femininos de futebol, muitos jornais publicaram materiais afirmando que a prática seria imprópria e prejudicial à “natureza feminina”. Além de apontar que as mulheres eram muito frágeis, a imprensa apresentou “evidências” médicas de que esse tipo de esporte poderia afetar a saúde física, em especial a capacidade de gerar filhos. Campanhas de difusão direcionadas a figuras ligadas ao futebol feminino envolveram acusações sobre irregularidades financeiras e exploração sexual.
Inclusive, não era incomum o uso do termo “evas” para se referir às mulheres. O livro Evas do Gramado: a história do Primavera Atlético Clube, o tempo de futebol feminino proibido no Governo Vargas conta que as jogadoras de futebol eram chamadas dessa forma pelos jornais na década de 1940, o que podemos interpretar como uma forma de acessar a noção de que as mulheres carregam a herança pecadora da imagem da primeira mulher dos cristãos.
Figura 1 – Jornal Diário da Noite no dia 11 de maio de 1940

Figura 2 – Charge “Bispo excomunga mulheres que jogam futebol” no Jornal dos Sports em 1983

Figura 3 – Jornal O Imparcial, de 1941, exibindo as desqualificações e acusações relacionadas às mulheres envolvidas com futebol

As prisões aconteceram e o futebol de mulheres se tornou caso de polícia: foi formado o cenário da proibição oficial de 1941, momento em que diversas publicações passaram a reforçar a noção de que o futebol não era um espaço feminino, noticiando os casos de represália com relação a suas praticantes, que também carregaram o estigma de “mulheres masculinizadas”.
Figura 4 – Jornal O Globo se refere ao futebol feminino como “espetáculo degradante” em 1959

Figura 5 – Trecho da matéria “Um Pedrinha na Chuteira” do Jornal dos Sports em 1964
A noção de que coloca figuras femininas e masculinas em constante tensão faz parte de uma construção misógina da realidade, já que o ódio e a repulsa são usados ??em sua função política na manutenção das estruturas da sociedade patriarcal. Para Manne (2018), devemos pensar na misoginia como organizações para sustentar a ordem patriarcal entendida como uma vertente entre vários sistemas semelhantes de dominação, incluindo racismo, xenofobia, classismo, preconceito de idade, capacitismo, homofobia, transfobia e assim por diante.
Embora, por definição, o ódio misógino seja direcionado às figuras femininas, como evidencia Manne (2018, p. 52), os “misóginos podem amar suas mães – sem mencionar suas irmãs, filhas, esposas, namoradas e garotas”, tendo em vista que as mulheres possuem funções sociais muito importantes. Para Anjos (2020), os homens sexistas não querem viver sem usufruir das tarefas domésticas, sociais, emocionais, sexuais e reprodutivas associadas às mulheres, logo, a completa eliminação delas não seria produtiva para eles. “A misoginia era, portanto, separando as mulheres úteis ao patriarcado daquelas que começaram a criar problemas, punindo, preferencialmente, as últimas” (Anjos, 2020, p. 408).
A misoginia, então, atua para dividir as mulheres, principalmente entre boas e mais, valorosas e amorais, femininas e masculinizadas, recatadas e libertinas, entre tantos outros grupos considerados opostos e excludentes.
Ao se tratar do futebol feminino, podemos perceber que existiam aquelas considerações masculinizadas, que desafiavam os papéis de gênero e buscavam ocupar um lugar em um espaço de reserva da masculinidade – o que não passava impune em uma sociedade patriarcal. Com a queda da proibição em 1979 e a regulamentação posterior na década de 1980, essas mulheres que praticavam esporte foram representadas de forma estereotipada e, com a formação de equipes e organização de campeonatos, divulgadas para um período de sexualização e objetificação de atletas.
Figura 6 – Capas da revista Placar de setembro de 1996 e março de 1997, respectivamente

O uso desses mecanismos misóginos está expresso nos registros fotográficos focados no corpo feminino e também no conteúdo dos textos, que deixavam de lado aspectos técnicos e táticos inerentes ao esporte para retratar aspectos estéticos das atletas e até mesmo as vidas pessoais das jogadores – em um movimento de imposição de padrões de beleza (branco e magro) e de comportamentos cisheteropatriarcais. A submissão da performance e do espaço ocupado por atletas ao olhar e ao desejo masculino se revela enquanto um dispositivo que pune essa mulher, silenciou a trajetória dessa modalidade que superou diversas barreiras no seu objetivo se estabelecer – de maneira legal e regulamentada, além de profissional – e diminuir a atuação esportiva das jogadoras, que buscam legitimidade e sustento por meio do esporte.
Assim, se o machismo/sexismo pode ser apontado como responsável por justificar e sustentar as ideologias que deram base aos discursos midiáticos, o impacto dessas representações, tais como o julgamento social, as medidas práticas de banimento do futebol feminino e a negligência de entidades competentes, podem ser considerados exemplos de manifestações misóginas que punem as mulheres que desafiam as expectativas de gênero ao se inserirem no universo do futebol.
Portanto, calúnias e difamações, ridicularização e silenciamentos, bem como sexualização e objetificação foram alguns entre tantos outros mecanismos misóginos selecionados ao longo do período de origem, proibição e desenvolvimento do futebol feminino brasileiro na imprensa.
A misoginia atuosa e se revelou marcante na forma como o jornalismo esportivo representava aqueles que se envolviam com o futebol. Essas atletas adentraram um campo historicamente masculino, deixaram de lado as expectativas sociais de feminilidade e foram penalizadas (até mesmo com cadeia). Com isso, lutaram e ainda lutam pelo espaço no futebol brasileiro, um campo marcado pela desigualdade de representação evidenciada em retratos midiáticos misóginos e baseado em construções de gênero, uma categoria em que prevalecem as dimensões sociais das diferenças entre os sexos.
Referências
ALMEIDA, Auriel. Evas do Gramado : a história do Primavera Atlético Clube, o tempo de futebol feminino proibido no Governo Vargas. Rio de Janeiro: Hanói Editora, 2017.
ANJOS, Júlia Cavalcanti Versiani. Misoginia como política retórica: o caso do movimento antissufrágio. Revista Ártemis , vol. XXX nº 1; jul-dez, 2020. pp.
BONFIM, Aira Fernandes. Futebol Feminino no Brasil : entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941). São Paulo: Edição da autora, 2023.
BOSCH, Esperança; FERRER, Vitória A.; GILI, Margarita . História da misoginia . Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial, Palma de Maiorca: Universitat de les Illes Balears, 1999.
MANNE, Kate. Down girl : a lógica da misoginia. Nova Iorque: Oxford University Press, 2018.
PATOU-MATHIS, Marylène. O homem pré-histórico também é mulher : uma história da invisibilidade das mulheres. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2022.