
O ano de 2024 foi decisivo para a skatista Rayssa Leal, consolidando-a como um dos grandes nomes do skate mundial e do esporte brasileiro. Iniciando o ano como vice-campeã na etapa de Paris da Street League Skateboarding (SLS), em fevereiro, Rayssa demonstrou consistência e habilidade ao longo das competições internacionais. Em abril, conquistou o título na etapa de San Diego da SLS, reafirmando sua posição entre as principais competidoras da modalidade.
Em maio, a atleta alcançou mais um marco ao vencer a etapa da China do Pré-Olímpico de skate street, resultado que lhe garantiu a vaga para os Jogos Olímpicos de Verão de Paris. Durante as Olimpíadas, Rayssa não apenas assegurou mais uma medalha para o Brasil – o bronze – como também se tornou a pessoa mais jovem do país a conquistar duas medalhas olímpicas, reforçando sua relevância histórica no esporte.

Ao longo do ano, Rayssa continuou acumulando conquistas. Em outubro, foi tetracampeã no STU Pro Tour, realizado no Rio de Janeiro, demonstrando seu domínio em competições nacionais e internacionais. No encerramento da temporada, em dezembro, Rayssa escreveu seu nome na história ao se tornar a primeira tricampeã mundial da SLS. Em uma final emocionante, superou dificuldades iniciais e reassumiu a liderança com notas expressivas, incluindo dois “9 club”.

Os feitos de Rayssa em 2024 reforçam não apenas sua excelência técnica, mas também sua capacidade de superar desafios e inspirar novas gerações. Essa trajetória de triunfos e resiliência pode ser analisada sob uma perspectiva que transcende o esporte, relacionando sua história com arquétipos universais presentes na Jornada do Herói.
A Jornada do Herói: Explorando a Narrativa de Rayssa Leal
Joseph Campbell define o monomito como uma estrutura narrativa que reflete o percurso arquetípico do herói em mitos e histórias ao longo do tempo e das culturas. O autor desenvolveu o conceito de monomito em O Herói de Mil Faces (1949), inspirado por estudos de Jung, Bastian e outros. Ele descreve padrões recorrentes em narrativas e mitologias globais, aplicáveis independentemente de época ou cultura. O termo “monomito” foi emprestado do romance Finnegans Wake, de James Joyce (1939). Este percurso segue três estágios principais: Partida (Separação), Iniciação e Retorno.
As vigorosas narrativas dos gregos ou nas lendas majestosas da Bíblia, a aventura do herói costuma seguir padrão da unidade nuclear acima descrita: um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida (CAMPBELL, 1989, p. 20).
Essas etapas correspondem a um rito de passagem, conforme Campbell (2005, p. 36), sendo comparáveis aos processos de transformação pessoal e cultural.
Partida (Separação)
O primeiro estágio representa o momento em que o herói é chamado a abandonar seu mundo conhecido para enfrentar desafios no desconhecido.
- Etapas principais:
- Mundo Cotidiano/Mundo Comum: A vida inicial do herói antes da aventura.
- Chamado à Aventura: Um evento ou revelação que leva o herói a sair de sua zona de conforto.
- Recusa do Chamado: Dúvidas ou medos que retardam a aceitação da jornada.
- Ajuda Sobrenatural/Encontro com o Mentor: A chegada de uma figura ou força que guia o herói.
- Travessia do Primeiro Limiar: A entrada no mundo desconhecido.
Iniciação
Aqui, o herói enfrenta testes e desafios que o levam ao amadurecimento e à transformação.
- Etapas principais:
- Estrada de Provas/Testes, Aliados, Inimigos: O herói é testado e faz aliados, ou descobre inimigos.
- Aproximação da Caverna Oculta: Um momento de preparação para o confronto maior.
- Provação: O desafio central que define a jornada.
- Encontro com a Deusa/A Grande Conquista: Recompensa ou insight obtido após a superação dos desafios.
- Apoteose: O herói atinge um estado elevado de consciência ou poder.
Retorno
O herói retorna ao mundo comum, transformado, trazendo benefícios para si e para a comunidade.
- Etapas principais:
- Caminho de Volta/Recusa do Retorno: Dificuldade em deixar o mundo extraordinário.
- Voo Mágico: Uma jornada de retorno, muitas vezes com obstáculos adicionais.
- Travessia do Limiar/Retorno: Integração da nova sabedoria no mundo comum.
- Ressurreição: O herói renasce metaforicamente, com uma nova perspectiva.
- Retorno com o Elixir: O herói traz algo valioso ao seu mundo de origem.
Partida: O Chamado à Aventura
A primeira fase da Jornada do Herói envolve a separação do herói de seu mundo comum. No caso de Rayssa, seu “Chamado à Aventura” aconteceu em 2015, quando um vídeo viralizou nas redes sociais mostrando-a praticando skate, vestida como uma fada. Essa representação lúdica do esporte despertou a atenção da mídia e do público, além de abrir portas para competições nacionais e internacionais. Campbell explica que “o herói é chamado para sair de seu mundo cotidiano para um mundo de aventura” (CAMPBELL, 2007, p. 58).

Outra etapa importante é a “Recusa do Chamado”, que, em narrativas esportivas, pode ser interpretada como os desafios iniciais enfrentados por atletas emergentes. Rayssa enfrentou barreiras tanto de infraestrutura quanto de reconhecimento, comuns à realidade de atletas jovens no Brasil.

Iniciação: A Provação e o Reconhecimento
A fase de Iniciação é marcada por testes, aliados e inimigos. No caso de Rayssa, essa etapa coincide com sua ascensão como competidora internacional. Aos 11 anos, Rayssa venceu sua primeira etapa do Mundial de Skate Street em Los Angeles, provando sua competência no cenário global. Essa conquista simboliza a “Travessia do Primeiro Limiar”, quando o herói é introduzido a um novo mundo cheio de desafios.
Durante as Olimpíadas de Tóquio, em 2021, Rayssa enfrentou atletas experientes e sob intensa pressão. A medalha de prata aos 13 anos consolidou sua posição como uma das mais jovens medalhistas do Brasil. Christopher Vogler, em A Jornada do Escritor, ressalta que “o herói enfrenta os testes mais difíceis e se transforma” (VOGLER, 2015, p. 121).
Nesta fase, é importante destacar os aliados que acompanharam Rayssa, como sua família e equipe técnica, que desempenham o papel de mentores e suportes fundamentais para sua jornada.
“Joseph Campbell, em uma conversa com Bill Moyers, definiu outro fator chave que facilita essa mitificação: a juventude. “A história de uma criança se tornando um jovem, o despertar do novo mundo que se abre para a adolescência —, sempre ajuda a fornecer um modelo para acompanhar esse desenvolvimento” (CAMPBELL, 1990, p.145). Soma-se a isso, o fato de que, durante as Olímpiadas de Tóquio, a Fadinha tinha 13 anos de idade, número, como visto anteriormente, considerado sagrado por algumas seitas”. BARICATI, 2023, p. 55.
A “Caverna Oculta” simboliza o momento em que o herói enfrenta preparações e desafios prévios ao confronto final. Para Rayssa, essa fase foi marcada por sua capacidade de superar adversidades físicas e emocionais. Em 2022, durante o Campeonato Mundial de Skate Street em Sharjah, ela sofreu uma queda nos treinos e precisou ir ao hospital para tratar o punho lesionado. Mesmo assim, Rayssa retornou à competição e conquistou a medalha de ouro.
Situações semelhantes se repetiram em 2023, quando ela competiu no STU Open Rio enfrentando dores no tornozelo após um choque com o skate. Apesar disso, Rayssa superou as limitações e garantiu mais um título importante, consolidando sua reputação de resiliência e foco. Esses momentos representam a preparação essencial do herói, tanto no aspecto físico quanto no psicológico, para os desafios à frente.
A etapa da “Estrada de Provas” na Jornada do Herói é marcada por testes cruciais, o encontro com aliados e o enfrentamento de inimigos. Para Rayssa Leal, essa fase foi evidenciada em sua participação nas Olimpíadas de Tóquio, onde ela se destacou ao competir contra as principais skatistas do mundo, incluindo as japonesas Momiji Nishiya e Funa Nakayama. Embora a rivalidade entre Rayssa e as skatistas japonesas tenha sido amplamente discutida, o skate demonstrou que essa disputa é construída de forma saudável e cooperativa. Em várias ocasiões, cenas de apoio mútuo entre Rayssa e suas adversárias ilustraram a camaradagem do esporte, transcendendo a lógica de inimizade comum em narrativas competitivas.

Retorno: Um Fenômeno em Construção
O estágio final da Jornada do Herói, o Retorno, é caracterizado pelo retorno do protagonista ao mundo comum, transformado pelas experiências vividas, trazendo benefícios para si e para a comunidade. Rayssa Leal, com apenas 16 anos, representa um fenômeno ainda em construção. Apesar de sua jovem idade, ela já acumula conquistas impressionantes que a posicionam como uma figura emblemática no esporte.
“Para começar, Rayssa Leal chegou perto de possuir todos os atos na construção da sua narrativa. O único ato que não foi identificado na amostra foi o terceiro, ‘Conclusão’, que não teve nenhuma matéria sobre. No entanto, a presença dos dois primeiros atos da Jornada são mais do que suficientes para (1) apresentar a skatista e sua origem ao leitor; (2) garantir maior profundidade para sua história, e (3) assegurar uma maior identificação do leitor com a menina que tornou a ficção designada pelo apelido “Fadinha do skate” em algo sólido, palpável e possível para quem lê”. (CAVALHEIRO, 2023, p.70)
Ainda não vimos Rayssa completar sua Jornada do Herói com o “Retorno com o Elixir”, mas acompanhamos os primeiros passos dessa trajetória. O “Elixir” que Rayssa promete trazer não se limita a títulos e medalhas; sua influência inspira jovens atletas, promove a inclusão no esporte e projeta o skate brasileiro no cenário mundial. Como espectadores privilegiados, podemos testemunhar uma história que continua a se desenrolar e que certamente nos levará aos momentos de transformação e conclusão de sua jornada.

Considerações Finais
A análise da Jornada do Herói na trajetória de Rayssa Leal, tanto no campo esportivo quanto na mídia, revela o poder do esporte em construir narrativas inspiradoras que conectam atletas e público. Neste artigo, optamos por não realizar um recorte fio-a-fio de como a evolução da trajetória de Rayssa é pontuada pela imprensa. Em vez disso, levantamos interseções significativas entre o conceito da Jornada do Herói e sua história, explorando como a mídia se apropria dessa narrativa para endossar discursos que conectam esporte e inspiração.
Helal e Costa (2021) já discutiram como a brasilidade é frequentemente evocada para construir figuras heroicas no esporte, destacando elementos autênticos como o drible no futebol. De maneira análoga, Rayssa Leal incorpora características únicas de um corpo jovem e irreverente, que, aliadas à estética do skate, reforçam sua identificação como símbolo de alegria e resistência em tempos difíceis.
Neste sentido, a vitória de um atleta, seja em esportes individuais ou coletivos, é sempre a vitória da nação ou equipe que ele representa. As biografias dos ídolos são “editadas” na imprensa, que enfatiza certos aspectos e minimiza outros. No entanto, o ídolo esportivo “escreve” sua trajetória em “parceria” com a mídia. (HELAL; COSTA, 2021, p. 145)
Assim como o futebol-arte se consolidou como um elemento da identidade nacional, o skate de Rayssa Leal mostra o potencial para redefinir a forma como o esporte é percebido e praticado no Brasil. Sua autenticidade, tanto nas pistas quanto nas redes sociais, molda uma narrativa de heroísmo contemporâneo que dialoga diretamente com as expectativas de sua geração.
Em última análise, a história de Rayssa Leal transcende o esporte, oferecendo uma lente para entendermos como os heróis modernos são construídos em parceria com a mídia e o público. Acompanhá-la neste estágio inicial de sua carreira é não apenas um privilégio, mas uma oportunidade de testemunhar o nascimento de uma narrativa heroica que promete influenciar o imaginário esportivo por anos a fio.
Referências
BARICATI, Luis Fernando da Silveira. Jornada da Fada: Rayssa Leal no documentário “É ouro – O brilho do Brasil em Tóquio”. 2023. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo) – Centro de Educação, Comunicação e Artes, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2023.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2007.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito – Joseph Campbell com Bill Moyers. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athenas, 1990.
CAVALHEIRO, Giulia Beatriz Alves Couto. A construção do heroísmo de Rayssa Leal, Rebeca Andrade e Italo Ferreira nas Olímpiadas de Tóquio: análise da cobertura do jornal Correio do Povo. 2023. 79 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo) – Universidade Federal de Santa Maria, Frederico Westphalen, RS, 2023.
HELAL, R., & COSTA L. Heróis e vilões do futebol: as narrativas da imprensa brasileira. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, 13, 2021
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.