As palavras que dão título ao texto são algumas das que tentam explicar o motivo de torcer para o Botafogo. Na primeira parte do texto, escrita e publicada semanas atrás, falei sobre a temática do tempo, passando por algumas épocas boas e ruins do Mais Tradicional. Agora, pretendo trabalhar com as escolhas e as lembranças, pois são, respectivamente, fatores que simbolizam a sina que é ser botafoguense e, de complemento, a finitude do tempo, que continua só, mas acaba para todos. Aproveitemos os ótimos momentos em campo, alvinegros, porque até o tempo de Botafogo há de se esgotar um dia.
CAPÍTULO 2: Escolhas e lembranças
Com essa camisa preta e branca tudo é diferente, como sabemos, esse sentimento ninguém entende. Então, eu te pergunto: como você escolheu o time de coração pelo qual torce? Caso você seja do preto e branco, eu reformulo a pergunta: como o Botafogo te escolheu? Influência dos pais, dos avós, dos tios, das vitórias e títulos no campo, dos jogadores e até das cores são algumas das respostas mais comuns. Há coisas que só acontecem ao Botafogo, e o ditado se aplica também ao torcedor. Eu posso dizer que sou Botafogo por causa de um tricolor, meu pai. Estranho, né?
Quando eu era pequeno, ele contava histórias da infância dele e boa parte envolvia o pai dele, meu avô Joaquim. Entre muitos relatos, descobri que ele torcia para o Botafogo. Tive muitos amigos flamenguistas na infância, alguns dos meus primos e avô materno são vascaínos e meu pai é torcedor do Fluminense. Qual decisão um menino de seis anos tomaria para escolher um time de futebol, sabendo de tudo isso? É óbvio que seria se juntar ao lado alvinegro da força com seu falecido avô, como uma forma de homenageá-lo sem ao menos tê-lo conhecido em vida, pois quando Joaquim faleceu, em novembro de 2001, esse menino tinha apenas um ano de vida. Minha primeira partida de futebol num estádio? Uma goleada do Flamengo sobre o Figueirense pelo Campeonato Brasileiro de 2007, no Maracanã. Lembro vagamente do dia, mas mesmo quando pintaram meu rosto de vermelho e preto, meu coração já era preto e branco. Mesmo que eu cantasse a música “raça, amor e paixão”, meu subconsciente já sabia que nem ela nem ninguém seria capaz de calar esse meu amor. Meu avô me escolheu, o Time da Estrela Solitária me escolheu.
No dia 23 de novembro, depois de muito tempo, a uma semana da grande final da Libertadores 2024, de repente, não mais que de repente, das lembranças se fizeram as esperanças, do avô distante, próximo, e da recordação, o pressentimento. Meus tempos de infância voltaram por quase uma hora quando de repente, e não mais que de repente, meu pai lembrou e contou novamente as histórias que já conhecia sobre meu avô. O Botafogo tinha o melhor time, a melhor temporada, o melhor jogo, os melhores atletas e o melhor treinador, mas por ser o Botafogo, era necessário esse sinal verde para que me permitisse acreditar cegamente no título.
No dia anterior a esse, numa sexta, vi vários álbuns de fotos da família, vi foto por foto para encontrar uma do meu avô, e nada. Até achei, mas ele estava com outros parentes, e queria uma foto dele só. Como infelizmente não encontrei, resolvi pegar uma foto, tirá-la do meu celular, editá-la para deixar apenas a sua imagem. Uma semana depois, faltando um dia para a decisão, para o jogo que seria o maior de nossas vidas e que mudaria para sempre a história do nosso querido Botafogo, fui a uma reveladora de fotos, na Tijuca, e pedi para que fizessem a foto do meu avô no formato 3×4.
O melhor dia do Glorioso só poderia ser no sétimo dia da semana, vencendo a competição que tem um apelido tão comum quanto o dele: a Glória Eterna. No dia do jogo, como todo bom botafoguense, repeti tudo: mesma camisa, mesmo colar, mesma calça e mesmo tênis de jogo. Não mudei nada, apenas adicionei duas coisas, um terço e a foto do meu avô guardada na carteira. A ideia surgiu quando a página oficial da competição divulgou uma tirinha do Botafogo finalista. Era um garoto junto ao pai ouvindo no rádio a eliminação do Botafogo numa edição de Libertadores, nos tempos áureos do futebol brasileiro. Nas tirinhas seguintes, esse garoto, já crescido, viveu junto com seu clube as dificuldades e a dureza do tempo, tão generoso com alguns e tão cruel conosco. E, por fim, na última tirinha, o personagem principal já estava mais velho, com os olhos marejados, acompanhado dos filhos e com a foto do pai, já falecido, indo para o jogo. Todo mundo tem uma história especial com seu clube de coração, mas naquele dia, eu e milhares de botafoguenses carregamos conosco memórias que não eram nossas, no intuito de representar alguém especial, um ente querido que, no plano terreno, foi castigado pelas más gestões e passagem do tempo e impedido de ver este momento tão aguardado, pelo menos fisicamente.
O encontro de almas, sim, aquele mesmo das “almas de 2005, 2006, 2007 e 2008”, agendado para o Morumbi nas quartas de finais (1), teve que ser modificado para almas mais antigas, daquelas nascidas nos anos 30, 40, 50 e 60, e por que não falar das vidas que se foram, de forma injusta e precoce, nos anos 80, 90 e 2000? O encontro de almas foi adiado para General Severiano, para o Estádio Nilton Santos e para o Monumental de Nuñez, no dia 30 de novembro de 2024, às 17h, sem hora para terminar, com instantes a eternizar. Muitas dessas almas viram craques, conquistas e grandes momentos, mas o futebol e o Botafogo demoraram muito para lhes retornar esses prazeres, não puderam ficar para a festa.
Enquanto escrevia esse texto, lembrei de Seu Delneri (2), o velho tatuado que coloriu sua vida com amor em preto e branco. Lembrei de Clarice Lispector (3), escritora de A Hora da Estrela, e parece que ela finalmente tinha chegado. Chegou esse tão esperado momento por ti, né Beth Carvalho (4)? Pode festejar onde quer que esteja, madrinha, você merece. Predestinados celestiais sejam nossos ídolos já falecidos, predestinado celestial seja o Botafogo, predestinado celestial seja Armando Nogueira (5). De repente, não mais que de repente, se John Textor falhasse na gestão e não conduzisse nosso time às glórias, tenho certeza que Vinícius de Moraes (6), se fosse vivo, diria: “Me diga sinceramente uma coisa Mr. Textor, o senhor sabe lá o que é o mijo do Biriba? O senhor sabe lá o que é ser do Mais Tradicional? O senhor sabe lá o que é torcer para o Botafogo?”.
Enquanto eu escrevia, lembrei de quando desenhava num pequeno bloco de notas o qual o botafoguense Seu Renato anotava os resultados do jogo do bicho enquanto conversava com meu pai, antes do passeio de bicicleta que fazia com ele até o Sambódromo. Depois de uns anos, nunca mais eu vi o Seu Renato. Enquanto escrevia, lembrei de Cláudio, irmão de camisa e de Renato, que fazia a mesma coisa e também deixava eu rabiscar nas folhas em branco. Lembrei da doce senhora e vizinha Idalina, lembrei do pequeno João Hélio (7). E para acabar com a repetição e com a pieguice para aqueles mais mal-humorados, termino escrevendo que sempre vou lembrar de quando levei Joaquim comigo para assistir ao primeiro grande título do Botafogo na minha vida. Jogamos todos juntos, assim na Terra como no Céu.
A estrela cadente pode atender um pedido a quem a vê. A estrela solitária pode enganar pelo nome e quem apenas a vê. Quem a vê e a entende sabe que ela é o resultado de todas as pessoas que um dia viraram estrelas, uma verdadeira constelação de cinco pontas. Um dia vamos todos brilhar dentro do coração de cada torcedor do Glorioso, botafoguense, tenho certeza. Não somos cadentes, mas sim “solitários” e regentes de uma força maior, que na estrada dos louros, num facho de luz, nos conduz.
Referências:
1. São Paulo x Botafogo: favoritismo
3. Armando Nogueira, futebol e eu, coitada
4. A sambista que declarou amor ao Botafogo