O maior clube da Espanha também é parte de uma longa rivalidade que extrapola os campos de futebol – e uma das origens dessa disputa está guardada na história do franquismo e sua relação com o futebol.
O futebol e o franquismo tiveram uma relação próxima durante as quatro décadas que durou a ditadura de Franco. Antes disso, porém, o esporte já ocupava um lugar importante na sociedade espanhola. Como apontado por Quiroja (2013), o apelido de “Fúria” para a seleção do país ibérico foi criado durante os Jogos Olímpicos de 1920, na Antuérpia, pelo jornal francês “L’Auto”, refletindo o preconceito que o resto da Europa tinha em relação a Espanha, enxergando o país como menos sofisticado que os demais. Apesar disso, a própria imprensa espanhola ressignificou o termo rapidamente, e adotou o apelido.
A ascensão inicial da expressão de “fúria” espanhola aconteceu paralelamente ao crescimento dos discursos nacionalistas na Catalunha e País Basco no início do século XX, passando pela ditadura de Primo de Rivera, entre 1923 e 1930. Pouco tempo depois, em 1936, a Guerra Civil explodiu na Espanha, envolvendo inclusive o setor do futebol. Um dos episódios mais conhecidos e emblemáticos desse período é a morte do ex-presidente do Barcelona, Joseph Sunyol, logo no início dos conflitos, enquanto se deslocava de Madri para Valência. Menos comentado que isso, é a resistência republicana em Madri, na qual a Federação Espanhola cedeu sua sede para alistamento nas forças republicanas.
O Madrid F.C, na época ainda sem o “Real” no nome, foi um dos times que mais teve jogadores se alistando para resistência da Frente Popular, principal partido republicano durante a Guerra Civil Espanhola. A primeira tropa formada pelos voluntários do futebol, inclusive, teve o nome de Batallón Sunyol, em homenagem ao republicano e ex-presidente do Barcelona assassinado.
Com a vitória dos nacionalistas e a ascensão de Francisco Franco ao poder, seguindo a tradição dos regimes fascistas na Europa, o esporte recebeu uma atenção especial da ditadura franquista. Uma das primeiras ações foi controlar as modalidades, por meio da Delegación Nacional De Deporte, comandada pelo governo, e ultrapassando a federação de futebol espanhola na hierarquia do esporte nacional.
O futebol desempenhou um papel cultural central no franquismo, principalmente, a partir da segunda metade da década de 1940, com as partidas da seleção espanhola ocupando até três semanas da programação da mídia controlada pelo Estado. Nos clubes, a ditadura também exercia um grande controle. O objetivo de minar as identidades regionais, em prol de uma narrativa de Espanha unificada, tornava clubes como Barcelona e Athletic Bilbao, tanto lugares de resistência das comunidades locais, quanto de grande interesse para o controle do Estado. E se existia resistência à ideia de Espanha única, existia a necessidade de um time de futebol que corroborasse para essa narrativa.
E aí que entra o Real Madrid. O clube se encontrava em situação difícil após a Guerra Civil, com danos na estrutura do estádio Chamartín, além de troféus e arquivos desaparecidos durante a guerra. Gonzalez (2014) indica que até a década de 1940, o Real Madrid não tinha relação tão próxima com o governo, e muito menos ganhos econômicos. A figura chave para mudar essa situação tinha nome: Santiago Bernabéu.
Ex-jogador do time madridista, onde atuou entre 1912 e 1927, Bernabéu chegou a lutar nas forças franquistas durante a Guerra Civil, e depois do fim do conflito, começou a atuar na política do clube espanhol, sendo eleito para seu primeiro mandato como presidente do Real Madrid em 1943. Bernabéu enxergou na aproximação com o governo de Franco uma possível saída para os problemas do clube, tanto expressos na falta de títulos, quanto na perda de infraestrutura. A principal ideia de Bernabéu para resolver a crise do Real Madrid era a construção de um novo estádio. Já o governo de Franco, por outro lado, viu no time de Madri o potencial de promover uma ideia de Espanha a partir do clube.
Em 1946, o estádio Chamartín foi demolido e reconstruído, sendo reinaugurado logo no ano seguinte – ainda com o mesmo nome. A primeira partida no novo estádio foi contra o time português Belenense, com 75 mil espectadores. O período de presidência de Bernabéu no Real Madrid, que durou entre 1943 e 1978, praticamente coincidiu com a duração do franquismo. Foi a era mais vitoriosa do clube merengue, que em vinte anos conquistou 16 títulos nacionais, 7 Copas do Generalíssimo, 6 Copa dos Campeões Europeus e uma Copa Intercontinental.
Especialmente entre os anos de 1950 e 1960, o Real Madrid agiu como uma espécie de propaganda esportiva do “milagre espanhol”, criando tanto na Espanha quanto na Europa uma relação entre o clube e o governo franquista. Shaw (1987) afirma que a principal diferença entre a relação do Real Madrid e franquismo é que o time se permitiu, voluntariamente, a ser utilizado como embaixador não oficial do governo espanhol. Mesmo que os espanhóis sentissem os efeitos brutais da ditadura, as conquistas do Real Madrid no futebol permitiam que tivessem orgulho do esporte no país, também por estarem atrelados a um time e não a seleção nacional, que seria a mais óbvia representação do país no esporte.
Um dos capítulos mais marcantes foi também a polêmica contratação de Di Stéfano, um episódio que marcou a rivalidade entre Real Madrid e Barcelona. Em 1953, a Delegación Nacional De Desporto, por ordens de Franco, proibiu a contratação de estrangeiros para o campeonato espanhol – bem no momento que o Barcelona realizava a contratação do craque argentino. Em 2017, o jornal argentino “La Nacíon” publicou documentos que mostravam negociações entre o clube catalão e o River Plate em relação a Di Stéfano, mesmo que na época, o jogador já estava no Millionarios, na Colômbia.
A intervenção da proibição de estrangeiros dificultou a transferência do jogador à Espanha, e mais do que isso o Real Madrid demonstrou interesse na contratação. A solução para a federação espanhola seria “dividir” o jogador: Di Stéfano jogaria duas temporadas em cada clube. Apesar de ter aceitado em um primeiro momento, depois de críticas da torcida culé, o presidente Marti Carreto entregou o cargo e o acordo se desfez.
Como resultado, o Real Madrid teve caminho livre para contratar o jogador – e o Barcelona recebeu uma compensação financeira por ter desistido de Di Stéfano. Pelo Real Madrid, o jogador argentino, que posteriormente tiraria nacionalidade espanhola e jogaria pela seleção espanhola, Di Stéfano conquistaria oito campeonatos espanhóis e cinco Copa dos Campeões.
Outra contribuição de Bernabéu foi exatamente o envolvimento na criação da Copa dos Campeões, que hoje é a Liga dos Campeões, principal competição continental de clubes na Europa. O Real Madrid não apenas foi campeão da primeira edição do torneio, na temporada 1955-56, mas ganhou as cinco primeiras edições da Copa dos Campeões. Ainda sob o comando de Bernabéu, ganhariam o torneio também na temporada 1965-66, sendo o último título internacional de um time espanhol até a década de 90, quando Barcelona conquistou seu primeiro título na temporada 1991-92.
Mas seria essa relação o suficiente para eleger o time merengue como ator ativo do regime franquista? Ainda que tenha se disponibilizado a ser usado pelo governo, as intervenções franquistas no futebol se estenderam até mesmo aos times com histórias institucionais de resistência à ditadura de Franco. A aproximação do Real Madrid com Franco pode ser resumida a atuação de Bernabéu como ponte entre ambos, ou o fato de ser uma relação que beneficiou os dois torna quase uma simbiose?
O objetivo não é alcançar uma resposta definitiva, mas refletir sobre as complexidades do relacionamento entre futebol e política. Embora frequentemente pareça fácil resumir clubes e posicionamentos, baseados em experiências passadas, a realidade é muito mais complicada do que isso. Ainda assim, é inegável que o crescimento que o Real Madrid encontrou durante a duração do franquismo elevou a equipe de apenas um time espanhol a uma das principais forças do futebol no continente europeu, em especial quando comparado com a história de demais clubes da Espanha no período, sobretudo equipes como Barcelona e Athletic Bilbao, que foram locais de resistência de identidades locais. Pelo contrário, o Real Madrid foi um local de criar narrativas institucionais de uma Espanha unida sob o franquismo, conquistando títulos por décadas e se consolidando como um dos maiores times do mundo.
Até que ponto o Real Madrid de hoje é resultado (e construção) da proximidade entre Bernabéu, o clube e o franquismo? E até que ponto é justo associar toda uma instituição e torcida a um período de sua história? São os desafios da história do esporte.
Referências Bibliográficas
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