Violências em perspectiva comparada: jogo de espelhos entre a “barra brava” argentina Los Piratas e a “torcida organizada” brasileira Ira Jovem

A presente investigação etnográfica busca comparar a(s) violência(s), dinâmicas organizacionais e processos de formação social de dois atores fundamentais dos espetáculos de futebol masculino e profissional: as “barras bravas” argentinas e as “torcidas organizadas” brasileiras. Por tanto, recuperamos o trabalho de campo realizado com a barra Los Piratas de Clube Atlético Belgrano de Córdoba (Argentina) e a torcida organizada Ira Jovem do Club de Regatas Vasco da Gama (Brasil). Focalizamos em uma forma específica de violência, altamente valorada em termos nativos que na Argentina é nomeada como pelear e no Brasil como brigar ou lutar. A pesquisa irá comparar o surgimento histórico de ambos coletivos; suas composições sociais e dinâmicas organizacionais; as alteridades com as que se confrontam; e as espacialidades, temporalidades e meios utilizados em cada luta. Importa-nos como as barras e as torcidas organizadas se enfrentam trocando socos, facadas e tiros com diferentes “inimigos” que são definidas em diferentes espaços e tempos.

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Los Piratas do Belgrano. Foto: Facebook do Belgrano

A pesquisa é alimentada por três experiências etnográficas. O trabalho de campo feito com a barra “Los Piratas” do Club Atlético Belgrano de Córdoba (Argentina) entre 2010 e 2019 – com alguns períodos de interrupção – que foi viabilizada por uma bolsa de doutorado do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET) da Argentina. Uma outra investigação realizada entre 2016 e 2018 com a torcida organizada “Ira Jovem” do Clube de Regatas Vasco da Gama, no Rio de Janeiro (Brasil), graças a uma bolsa de pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Por fim, um terceiro trabalho de campo que está em andamento e procura a comparação dos dois casos. Esta última pesquisa conta com a bolsa de pós-doutorado da FAPERJ/CNPq no Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sob a orientação do Ronaldo Helal.

A minha experiência etnográfica consistiu e consiste em acompanhar e registrar as vivências dos integrantes de ambos os grupos – Los Piratas e a Ira Jovem – tanto quando acompanham seus times profissionais de futebol masculino em dias de competição, quanto em outras situações cotidianas além dos estádio: reuniões semanais, rolês noturnos, peladas de futebol, antes ou depois dos dias de jogos, ações sociais solidárias, redes sociais, locais de trabalho, aniversários, velórios, confraternizações nas dependências do clube, reuniões familiares, entre outros. Realizei entrevistas semiestruturadas com essas mesmas pessoas e outros atores relevantes da densa rede relacional que atravessa esses grupos. Apelei também para fontes secundárias, como recortes de imprensa gráfica, leis, filmes, registros fotográficos – meus e de terceiros – e dados estatísticos.

Subjacente a toda essa trajetória está a ideia de contrastar os processos de formação social das barras argentinas e das torcidas organizadas brasileiras a partir da etnografia comparada (BARTH, 2000). Pretende-se analisar as vivências dos próprios atores, comparando as “dimensões de variação” (Ibid: 193) das experiências cotidianas consideradas vitais para a formação coletiva e a adesão individual de cada grupo estudado. Algumas destas experiências têm a ver com formas de violência, crimes e transgressões. A partir desse subcampo, para os fins deste texto, irei comparar a dinâmica de uma forma específica de violência muito valorada pelos os meus interlocutores. Essa violência, na Argentina, aparece nativamente como pelear e no Brasil como brigar ou lutar. Refiro-me aos confrontos consensuais ou agressões unilaterais mediadas pelo uso da força física – com ou sem uso de armas – que os integrantes do Los Piratas e da Ira Jovem realizam contra outros atores, que definem como alteridades, segundo um espaço e tempo determinado. Essas alteridades também podem incluir outros membros do mesmo grupo (CABRERA, 2021)

Um esclarecimento fundamental: nem toda a violência praticada por esses grupos é briga, nem todas as brigas são protagonizadas por barras ou torcidas. Alguns integrantes de Los Piratas e da Ira Jovem também quebram cadeiras, insultam, discriminam, ameaçam ou saqueiam, ou seja, participam de outras práticas que também podem ser consideradas violentas. Aqui não vou omiti-las, apenas que serão levadas em conta na medida em que contribuam para a compreensão da complexidade da experiência mais importante para o artigo, a da pelear/briga. Por outro lado, cabe ressaltar que todas as práticas violentas citadas acima, inclusive brigas, não são de propriedade exclusiva das barras ou torcidas organizadas. Os demais atores do campo de futebol como jogadores, dirigentes, comissão técnica, jornalistas, policiais ou público em geral também protagonizam atos violentos.

Ira Jovem Vasco (@IjvOficial_) / X
Torcida Ira Jovem do Vasco. Foto: perfil oficial da Ira Jovem no X

Por que focar exclusivamente em um tipo específico de violência? Em primeiro lugar, porque o pelear/ brigar é uma experiência constitutiva desses grupos. Além disso, os enfrentamentos corpo a corpo por meio da violência física ocupam um lugar fundamental nos processos de adesão a esses grupos. A multiplicidade da violência é nativamente hierárquica e, na sua ‘classificação’, a luta física ocupa um lugar privilegiado. Por fim, centramo-nos nesta experiência específica porque se trata de um tipo de violência relativamente fácil de identificar como tal, dada a sua definição restritiva. O potencial metodológico é que uma agressão “prática”, “visual”, “física” e “dirigida” (RICHES, 1988, p. 13) e “altamente perceptível através de dois sentidos” (Ibid.: 28).”

Para compreender a dinâmica do pelear/brigar numa perspectiva comparativa, é necessário reconstruir as suas condições de possibilidade. Consequentemente, o texto propõe uma breve comparação diacrônica e sincrônica de algumas variáveis que nos ajudam a pensar continuidades e rupturas entre as formas de lutas levadas a cabo pelos membros de dois objetos empíricos contextualmente diferentes, mas analiticamente comparáveis. O texto está estruturado a partir de uma comparação entre: a) uma breve contextualização do surgimento histórico das barras argentinas e das torcidas organizadas brasileiras para compreender o quadro geral em que nasceram Los Piratas e a Ira Jovem; b) suas composições sociais e dinâmicas organizacionais, pois não podemos compreender as formas de pelear sem focar em quem são e como estão estruturadas; c) as alteridades a serem enfrentadas, ou seja, quem está sendo combatido; e d) as semelhanças e diferenças sobre as espacialidades, temporalidades e meios utilizados que entram em jogo em cada luta, ou seja, descrevendo onde, quando, como e com o que estão brigando.

* O artigo completo encontra-se disponível para acesso e divulgação neste endereço.

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