Comecei a estudar as práticas das torcidas de futebol no longínquo ano de 2007. Naquele momento algumas normatividades me autorizavam a escrever futebol sem a necessidade de adjetivos para que esse fosse entendido como a versão espetacular e praticada por homens. Apesar da brilhante tese do Arlei Damo ter sido publicada um pouco antes e ter proposto a perspectiva de futebóis, ainda não tinha tido tempo de me apropriar de alguma pluralidade deste fenômeno tão singular da pertença nacional. Em seu trabalho anterior, ele radicalizava a importância do futebol na construção das identidades dos meninos no Brasil:
o futebol cumpre a mesma função significante do vestuário, especialmente para os brasileiros do gênero masculino. (…) Em um país que a rua é um espaço privilegiado na socialização dos meninos e que o futebol é uma das brincadeiras preferidas, desdenhá-lo equivale a andar nu (Damo, 2002, p. 11).
Se voltarmos algumas décadas e olharmos para a obra organizada por Roberto Da Matta, o Universo do futebol, veremos como estava ainda mais naturalizado o domínio desse campo como masculino. Talvez mais que um domínio esse fenômeno poderia ser entendido como exclusivamente masculino:
No Brasil, discutir é falar de um modo sério. É ter que tomar um partido e não poder assumir uma atitude neutra quando se trata de um certo assunto. Assim, existem coisas, eventos e fenômenos que só podem ser discutidos. Entre eles, cito como dos mais característicos, política e futebol que, muito significativamente, não são considerados assuntos que possam ser apreciados por mulheres (DaMatta, 1982, p. 27).
Dentro da coletânea, até nossa rainha Simoni Guedes corroborava, naquele momento, o lugar normativo do masculino. Ela localizou uma relação direta entre praticar e entender o esporte o que reificou seu vínculo com a masculinidade:
<<Gostar de futebol>> pressupõe <<entender de futebol>>, o que só é conseguido através da prática do jogo. Isso delimita claramente essa área como masculina porque, além de outras razões, as mulheres não podem realmente <<gostar de futebol>>, já que a prática do futebol feminino é, pelo menos, incomum (Guedes, 1982, p. 62).
Durante os mais de quinze anos que venho militando nesse campo de pesquisa muita coisa aconteceu. No Brasil e no mundo o caráter plural do futebol enquanto prática de lazer e contemplação tem modificado, ainda que lentamente, sua normatividade masculina. Mulheres jogam, torcem e fazem a mediação. Ainda estão em número menor, mas se fazem presente e produzem narrativas outras que podem competir com o status quo anterior do futebol como coisa de homem.
Apesar de contemporaneamente alterado e resistido, esses significados ainda carregam traços na prática do torcer, do jogar e do mediar atual. Ainda é possível visualizar a existência de um quadro normativo que destaca a relação entre futebol e masculinidade no Brasil. Todos os que não são homens, preferencialmente jovens adultos, são “outros”. O currículo de masculinidade dos torcedores de estádio produz uma representação do torcedor que avalia e hierarquiza a conduta de todos os sujeitos no estádio, sejam eles homens, mulheres, crianças, idosos (Bandeira; Seffner, 2022). Quando investiguei os torcedores homens para minha tese de doutorado em 2015 e 2016, eles se referiam a agentes externos ou “novidades” nos estádios quando falavam em mulheres, homossexuais, crianças e idosos.
Jogo sem torcida
Nos últimos anos temos acompanhado a alteração da punição de jogar com os portões fechados. Agora em janeiro, como parte da punição dada ao Sport Club Internacional por incidentes no último campeonato estadual, somente mulheres, crianças, idosos e PCDs puderam comparecer ao estádio. Não se trata de caso inédito no Brasil, mas por sua localização me interessei mais por esse episódio. A torcida (presente no jogo sem torcida) fez uma linda festa. Curiosamente, essa festa foi noticiada como algo digno de nota. Em alguma medida, não se esperava que um estádio apenas com mulheres, crianças, idosos e PCDs fosse capaz de produzir uma linda festa em um estádio de futebol.
Em 2008, acompanhei uma partida no estádio Beira-Rio em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres. Naquele jogo, elas poderiam entrar no estádio sem pagarem ingressos. A presença do público feminino, aproximadamente 26% dos presentes, foi exaltada, mas um jornalista descreveu que o estádio estava silencioso para um público de cinquenta mil pessoas, além de relatos que ressaltavam o perfume das arquibancadas¹.
Se a iniciativa parece bastante simpática, não posso abrir mão de minha função intelectual para questionar como é possível fazer essa transposição de “jogo sem torcida” para “jogo exclusivo para mulheres, crianças, idosos e PCDs”. Mulheres, crianças, idosos e PCDs não fazem parte da torcida? Não são a torcida? Por um lado, tenho concordância de que nossos maiores problemas de violência são problemas de gênero. Nós homens somos disparados os que produzem violência contra os outros e contra nós mesmos. Enfrentar a violência é, sim, enfrentar a normatividade masculina. Por outro lado, não se reifica a masculinidade, uma masculinidade específica como o público legítimo dos estádios de futebol? Estar sem os homens no estádio, o que para muitas atrizes que frequentam rotineiramente esse espaço poderia ser uma benção, é na letra dos que regulam o esporte uma punição ao clube e a torcida.
Os patrocínios do futebol
Eduardo Galeano, de forma muito mais qualificada, descrevia Diego Maradona como um super humano. Não no sentido de superior, mas de muito humano, talvez melhor entendido como muito homem: viciado, mulherengo…
Boa parte das justificativas para a elitização dos estádios de futebol era a vontade/necessidade de trazer de volta as “famílias” para as praças esportivas. Neste campeonato gaúcho, as placas de patrocínio mostram, além das famigeradas casas de apostas, o site de acompanhantes Fatal Models. Assumo o risco de me portar como masculinista e, um tanto heteronormativo, mas acredito que o principal “público” desses anúncios ainda sejam os homens. Em nossa sociedade conservadora, ainda se entende que quem está autorizado a “comprar” sexo são os homens.
Anúncios como esse não reforçariam a expectativa que esse é um espaço legitimado e, em alguma medida, exclusivo para homens? Como dialoga com esse patrocínio de acompanhantes as mulheres, crianças, idosos, PCDs e famílias?
Funcionamento da norma
Sobre as normas é importante lembrar que “seu maior efeito persuasivo se dá no silêncio, não quando fala” (SEFFNER, 2022, p. 243). Neste breve exercício não falei de exaltação aos homens torcedores. A norma é desajustada ao falar de si. Ela marca o outro. Acredito que os estádios de futebol sejam hoje mais plurais quando pensamos em gênero, sexualidade e, também, geração do que eram em 2007. Acredito, também, que essa não é uma vitória definitiva. É importante estar atento para que o pouco que se avançou não seja perdido antes de chegarmos na próxima esquina.
Índice
¹ Ver Bandeira, 2009
Referências
Bandeira, Gustavo Andrada; Seffner, Fernando. O androcentrismo do torcer: do Universo do Futebol ao estádio contemporâneo. Revista Conexões, v. 20, p. 1-19, 2022.
Bandeira, Gustavo Andrada. “Eu canto, bebo e brigo… alegria do meu coração”: currículo de masculinidades nos estádios de futebol. Mestrado em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.
DaMatta, Roberto. Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DaMatta, Roberto. (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982. p. 19-40.
Damo, Arlei.. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), 2002.
Guedes, Simoni Lahud. Subúrbio: celeiro de craques. In: DaMatta, Roberto. (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982. p. 59-74.
Seffner, Fernando; Não há nada tão raro quanto o normal – O homem comum, a virilidade política e a norma em tempos conservadores. In: Seffner, Fernando; Felipe, Jane (orgs.). Educação, gênero e sexualidade: (im)pertinências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022. p. 234-267.