Principal objeto de cobiça de clubes e torcedores, o torneio que a imprensa brasileira convencionou chamar de Mundial de Clubes¹ nem sempre esteve no zênite das prioridades das agremiações nacionais. Numa época de fortes rivalidades locais e regionais e do orgulho de ter a única seleção tricampeão do mundo (1958, 1962 e 1970), as competições internacionais, na hierarquia do futebol brasileiro, ficavam atrás dos campeonatos estaduais, regionais e nacionais.
Foi a partir dos títulos do São Paulo (SOUTO, 2023)², em 1992 e 1993, que parece ter havido uma inversão mais acentuada no ranking das conquistas das equipes nacionais. Como coordenador do Grupo de Pesquisa Esportes, Ídolos e Identidades (GEII), tenho buscado investigar como a imprensa brasileira tratava e nomeava as competições internacionais dos anos 1950 a 1980, antes e depois de serem vencidas por times brasileiros, e se existia, à época, uma valoração diferenciada entre os distintos torneios e seus campeões “mundiais”. Como parte dessa pesquisa mais longa, nos detemos aqui no título de 1981 do Flamengo do Mundial Interclubes – primeiro e até agora único clube carioca a ostentar essa conquista.

Tal análise faz-se a partir da perspectiva do enviado do Jornal do Brasil para cobrir a final do Mundial Interclubes³ no Japão, João Saldanha. Em artigo publicado em 14 de dezembro de 1981 e intitulado “A escola passou de madrugada”, o jornalista, já na abertura do texto, expõe o estranhamento sobre um torneio ainda longe do imaginário da grande maioria da torcida e da imprensa: “E agora, como comemorar o título? Sei bem que não é um campeonato mas um jogo entre campeões, um da América e outro da Europa: significa que o vencedor é campeão dos dois continentes.” (grifos nossos). E acrescenta: “Sei também que ainda existem outros três (continentes). A Ásia, a África e a Oceania mas, que me perdoem, ainda não ganharam nenhuma vez Copa do Mundo. Nem de clubes nem de seleções. Então, trata-se de comemorar”, convoca.
Vemos assim que, ao mesmo tempo, em que destaca não se tratar de um campeonato, mas de um único jogo entre dois campeões dos seus continentes, Saldanha minimiza a ausência de representantes das regiões faltantes, apontando a sua baixa representatividade na hierarquia do universo do futebol mundial.
Na sequência, o jornalista lamenta que, “por diversões razões”, o clube não tenha podido comemorar o título da Libertadores da América, obtido no mesmo ano. Não comemorou oficialmente, porque, destaca, o torcedor fez a sua celebração independentemente dos poderes do clube: “Ninguém esperava aquela manifestação espontânea e altamente explosiva da população carioca que ficou muito satisfeita. No Galeão, Avenida Brasil e na Zona Sul estavam rubronegros (sic.) e torcedores de todos os clubes. Um festão popular.” (grifos nossos).
A menção à participação de “torcedores de todos os clubes”, talvez, deva ser menos entendida como uma inexistência das fortes rivalidades locais do que como uma manifestação supraclubista, num instante em que um representante brasileiro defrontava-se com time estrangeiro. Tal fato parece ser reforçado pela surpresa pela comemoração, que “ninguém esperava”, talvez, por tratar-se de competição que não se encontrava entre as mais valorizadas no ranking do futebol brasileiro da época.
A impressão ganha uma nova camada com a percepção de que “o Flamengo é o Brasil em campo” – inimaginável com o passar dos anos – que também sinaliza que o Mundial estava longe de ter sido apropriado pela maioria dos torcedores como as competições locais e nacionais. Quando isso acontece, a rivalidade falou mais alto, incluindo a constituição de torcidas que fundiam – os mais jovens diriam shippavam – nome de adversários estrangeiros com os de agremiações locais, como a Fla-Madrid, em 2000, quando o Vasco disputou com a equipe espanhola a final do torneio, na primeira vez que a competição foi organizada pela Fifa, que a batiza de 1º Mundial de Clubes.
Na sequência, Saldanha concentra-se mais em defender o direito dos torcedores a uma celebração do título do que à nomeação do torneio. Sem deixar de ironizar as opções da diretoria do Flamengo, especula se haveria “um festão no Regine’s”4 : “Tudo bem que façam o festão que nem sei se poderá ser muito grande. Parece que já aconteceu na Libertadores. Ou foi lá mesmo, ou no Le Coin5 ou nos dois. Mas acho os locais um tanto pequenos para o rubro-negro comemorar”, critica, acrescentando que “mesmo que fossem maiores, talvez, um pouco caro para a galera”.
Após defender que “a festa é todos” e, ao mesmo tempo, reconhecer ser “a hora imprópria”, numa referência à proximidade dos festejos de fim de ano, Saldanha salienta: “Mas o povão quando está inflamado manda bala e espera ‘sua escola passar’ até o outro dia. Trata-se de um festão popular e que se abram as portas para a festa oficial.”
Depois de destacar ter sido, “sem dúvida alguma, de grande importância a conquista desta vitória”, ele admite que a repercussão entre os japoneses foi fraca: “Embora os japoneses continuem com aquela atitude impenetrável, o resto do mundo sabe de tudo.” E volta a insistir no direito a uma festa popular para comemorar o título: “Não sei se chegarei a tempo de participar do festão popular oficial, se acontecer em pleno recesso do futebol6. Mas seria justo”, encerra.
O texto de Saldanha, figura icônica do jornalismo brasileiro e extremamente popular entre os torcedores brasileiros, joga novas luzes no entendimento de como o Mundial Interclubes, que, em 2000 isoladamente, e, a partir de 2005 de forma continuada, passaria a ser organizado pela Fifa, incluindo representantes dos outros continentes, foi se impondo à hierarquia do futebol brasileiro, desbancando campeonatos estaduais – que enfrentam forte esvaziamento – e nacionais.
À época, porém, como mostra o texto, até a nomeação era objeto de estranhamento, com parte da imprensa local referindo-se a ele como Mundial, sem que tal nomeação fosse amplamente apropriada por clubes e torcedores, incluindo os “de todos os clubes”, que comemoravam a vitória do adversário. Tal comemoração supraclubística, talvez, dê outra pista emblemática. O movimento “O Flamengo é o Brasil”, ao mesmo tempo, parece sinalizar que aquele torneio no distante e “impenetrável Japão” não parecia representar ameaça para o jogo permanente das jocosidades das torcidas, o qual tem como objetivo gozar o adversário derrotado da vez e provar que seu clube é melhor do que os demais.
Já a ausência de festa popular organizada pelo clube – impensável se a conquista se repetisse – também parece sinalizar que nem a diretoria do clube valorizava excessivamente o título, que, mais adiante, seria apresentado como ativo relevante, principalmente, em relação a seus rivais cariocas. A falta de disposição da diretoria para organizar a “festança popular” cobrada pelo jornalista, parece reforçar, ainda, o antagonismo entre um clube de corte popular e uma direção apontada, inclusive por correntes do clube, como elitista, que preferia comemorar as conquistas de uma das melhores fases do Flamengo no Regine’s ou no Le Coin.
Independentemente da ação da diretoria, a torcida, como mostrara na conquista da Libertadores, exibia o desejo de celebrar a conquista, embora aquele título, como lembrou Saldanha, o clube, “por diversões razões”, não tenha comemorado à altura. A coluna não dá conta de todo o clima da época, mas isso não deve nos impedir de enxergar nela um recorte significativo. A partir do texto de um dos jornalistas mais populares e respeitados por todas as torcidas, podemos perceber como, diferentemente da memória presente, o Mundial Interclube e, posteriormente, o Mundial de Clubes, não nasceram como a prioridade central de clubes e torcidas.
Ao que tudo indica, tal relação foi sendo construída aos poucos, sendo reforçada à medida que novos clubes brasileiros eram campeões e/ou, ao menos, se classificavam para o torneio, mobilizando suas torcidas e, a partir de determinado momento, as dos rivais, reforçando seu papel até virar o prato principal do cardápio do jogo das jocosidades dos torcedores. Para confirmar essa hipótese, é preciso aprofundar a pesquisa sobre aquele momento de transição no ranking do futebol brasileiro. Por enquanto, o que temos são pistas, ainda que emblemáticas.
Índice
1 Oficialmente, a competição é nomeada pela Fifa de Mundial Interclubes
2 Embora não exista um consenso a respeito, nos parece que o bicampeonato do São Paulo, em 1992 e 1993, simultaneamente, da Libertadores e da Copa Intercontinental, com ampla cobertura, principalmente da imprensa paulista, mas, também de outras praças, indicou uma virada de chave no ranking das prioridades dos clubes nacionais. Até então, em 31 edições das duas competições, apenas, cinco tinham sido vencidas por equipes brasileiras: Santos (1962 e 1963), Cruzeiro (1976), Flamengo (1981) e Grêmio (1983). Apenas seis anos após o bicampeonato do São Paulo, quatro times brasileiros foram campeões da Libertadores: Grêmio (1995), Cruzeiro (1997), Vasco (1998) e Palmeiras (1999). Todos foram derrotados na final pelo campeão europeu, mas foi a primeira vez em que o Brasil teve tantos candidatos disputando tal título num curto intervalo de tempo.
3 O torneio, entre 1980 e 2005, também ficou conhecido como Taça Toyota, nome do patrocinador.
4 Inicialmente um clube privativo, que exigia a apresentação de carteira de sócio para ingressar, o local depois virou uma boate, que reunia, como se dizia na época, o jet-set nacional e internacional, incluindo o então presidente do Flamengo, Márcio Braga, e vários diretores do clube. O estabelecimento ficava no subsolo do então Hotel Méridien, no Leme, na Zona Sul do Rio.
5 Restaurante localizado no Leblon, na Zona Sul, e que reunia clientela de perfil parecido.
6 O texto parece expor um contraste entre o que acontecia na época, quando o torneio acontecia após o fim das competições nacionais, com clubes e torcidas desmobilizados, enquanto, a partir dos anos 1990, passou a ser o grande desfecho da temporada do futebol brasileiro, atraindo as atenções de imprensa, clubes e torcidas, incluindo as adversárias do time brasileiro que, eventualmente, se classifique para o campeonato.
Referências bibliográficas
SALDANHA, João. A escola passou de madrugada. Tóquio: Jornal do Brasil, 14/12/1981
SOUTO, Sérgio Montero. A Imprensa e o Apagamento da Memória dos Campeões Mundiais. Belo Horizonte: 46º Congressso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2023.