Este relatório dá continuidade as publicações no âmbito do projeto Prociência “Nações esportivas: usos geopolíticos e apropriações mercadológicas do esporte no século XXI”, contemplado com uma bolsa pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciac?a?o Cienti?fica – PIBIC da UERJ (edital 2024: “Narrativas de consumo no esporte: mídias, culturas e representações”).
Introdução
Depois de um mês de outubro agitado, o último bimestre do ano de 2024 foi marcado não mais pela dúvida se o governo seguiria com o processo de regulamentação ou não, mas sim pelo modo como essa medida seria implementada. Houve contestações sobre a efetividade da fiscalização sobre as casas de apostas; a continuidade da pauta acerca do acesso a apostas pelos beneficiários do Bolsa Família; a divulgação de novos casos envolvendo manipulação de resultados de jogos de futebol; mais informações sobre a CPI das bets e o curto prazo das casas de apostas para sua regulamentação, que teriam até o final do ano para conseguirem a licença para atuar no país.
É diante deste cenário que monitoramos, ao longo dos meses de novembro e dezembro, o que foi publicado sobre o tema em três grandes veículos de notícias (Globo.com, Folha de SP e Metrópoles), escolhidos dentre os mais acessados do país segundo o Similar Web. Foram coletadas 198 matérias no total. Como visto anteriormente, a imprensa tradicional buscou desempenhar seu papel, acompanhando e repercutindo mais um capítulo da regulamentação das bets e de todos os pormenores envolvendo as casas de apostas. Dessa vez, notícias sobre a discussão no plenário da Câmara da lei que regulamenta essas empresas, os casos de manipulações em campeonatos esportivos e a procura de mecanismos para impedir que beneficiários do Bolsa Família apostassem em jogos de azar circularam pela internet no último bimestre de 2024, um ano turbulento em relação às bets e sua legalidade.
Nuvem de palavras: apostas, bets, regulamentação, publicidade, manipulação de resultados, lavagem de dinheiro, STF, lei das bets
Dos três veículos midiáticos analisados (Globo.com, Folha de SP e Metrópoles), a principal editoria a publicar matérias sobre as bets foi Economia, seguida por Política e Esportes, e, depois, regionais (como Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo). Como exposto no relatório anterior, a Folha de SP mantém uma sub-editoria própria para discutir as bets (a “Bets no Brasil”), o que demonstra a importância do tema para o veículo. De forma geral, os três portais abordaram os assuntos decorrentes das bets com um viés neutro, atendo-se aos fatos apresentados, principalmente o Globo.com – o que, provavelmente, se deve ao fato de a Globo estar em negociações sobre a criação de uma casa de apostas.
Os principais temas destacadas por todos os jornais catalogados compreendem as discussões sobre a constitucionalidade da lei 14.790/2023, lei que regulamenta as casas de apostas, os impactos econômicos e sociais das bets, a publicidade das bets e a manipulação de resultados esportivos, bem como o envolvimento de jogadores em esquemas de apostas e o funcionamento das empresas de apostas on-line.
Todos os veículos analisados acionam argumentos de autoridade para fundamentar as matérias. A partir da análise dos textos, foram observados que os principais atores consultados pertencem à esfera jurídica, como Paulo Gonet (procurador-geral da República) e Luiz Fux (ministro do STF), nomes que estamparam várias matérias ao longo do bimestre em foco. O Banco Central e a discussão sobre os beneficiários do Bolsa Família retornaram à mídia, assim como mais desdobramentos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas.
Todos esses assuntos circulam em um momento em que o mercado de apostas esportivas está sob crescente escrutínio no Brasil, com suspeitas de manipulação de resultados, falhas na regulamentação e tentativas de corrigir os erros cometidos no mercado de apostas esportivas no Brasil.
- Bloqueio de sites de apostas irregulares
Mais de 5.200 sites de apostas foram bloqueados desde o início de outubro até o mês de novembro. O governo federal, por intermédio da Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda, enviou duas listas à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) em outubro, com 2.040 e 1.400 sites, respectivamente. No dia 19 de novembro, mais uma lista foi enviada pelo SPA, com 1.800 novos portais a serem barrados no país.
O processo de bloquear os sites de casas de apostas funciona da seguinte maneira: a SPA envia a lista de sites irregulares para a Anatel, que repassa a ordem para cerca de 20 mil empresas de telecomunicações no Brasil. Essas empresas devem realizar medidas técnicas para efetuar o bloqueio ao acesso dos sites listados – esse processo, por sua vez, é monitorado pela Anatel. Todavia, a própria admitiu em entrevista à Folha de SP que não tem como garantir que os bloqueios sejam totalmente eficazes, salientando a capacidade dos sites ilegais de burlar as barreiras impostas. O presidente da Anatel, Carlos Baigorri, defendeu a necessidade de uma alteração da lei para incluir os operadores de DNS e de CDN (rede de servidores locais de conteúdo) nos bloqueios.
Em suma, no que tange ao bloqueio de sites de apostas irregulares, parece existir um consenso sobre a complexidade desse processo, com limitações técnicas e legais, e que o governo continua buscando meios para aprimorar a efetividade dessas ações. Além disso, tanto o presidente da Anatel quanto o secretário da SPA concordam que regulamentar é a melhor coisa a se fazer, tendo em vista que proibir não seria uma solução viável, uma vez que seria impossível controlar o mercado ilegal.
- CNC, STF e a insatisfação com a regulamentação das bets
O mês de novembro se iniciou com a discussão sobre a constitucionalidade da lei que regulamentou as bets. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a lei e alegando que a própria não protege, de maneira adequada, as famílias dos prejuízos financeiros causados pelas apostas. Os já citados Paulo Gonet e Luiz Fux estampam os títulos de algumas matérias (fig. 1). Assim como a CNC, Gonet também preparou uma ADI contra a lei 14.790/2023, argumentando que ela não protege a saúde da população e prejudica a economia. A PGR pediu a concessão de uma liminar contra a maior parte das normas, o que acarretaria a proibição das apostas e jogos on-line no país. Fux, relator da ação, concordou que a lei necessita de alguns ajustes e, durante a audiência, afirmou que a Corte deve julgar esse assunto ainda no primeiro semestre de 2025.
- Luiz Fux, Bolsa família e as bets
Luiz Fux continuou sendo uma das principais figuras que permeou as matérias sobre as casas de apostas. O ministro do STF determinou, no dia 12 de novembro de 2024, que o governo deveria impedir que os beneficiários desses programas sociais usem recursos do Bolsa Família e do BPC (Benefício de Prestação Continuada) para fazer apostas esportivas. Ainda nesse mesmo texto, Fux determinou que, de maneira imediata, havia a necessidade de medidas que proibissem a publicidade e propaganda de bets que tenham crianças e adolescentes como público-alvo. A tomada de decisão veio após uma audiência pública no Supremo sobre os impactos dos sites de apostas esportivas, os quais utilizaram dados de um estudo do Banco Central – estudo que, como mencionado no relatório anterior, o próprio BC afirmou conter falhas.
O governo federal tem trabalhado na implementação de medidas de proteção aos beneficiários de programas sociais, em conjunto com o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social e o Banco Central. Há uma preocupação do governo de que a legislação estaria se direcionando para uma inconstitucionalidade progressiva, o que necessita de correção imediata. Contudo, a implementação da proibição do uso de recursos de benefícios sociais para apostar é repleta de empecilhos. A AGU (Advocacia-Geral da União) informou ao STF que o governo não tem como impedir o uso do Bolsa Família em apostas, uma vez que as contas bancárias dos beneficiários também recebem dinheiro de outras fontes; também não seria possível “microgerenciar” os gastos de cada família ou passar uma lista de beneficiários para as empresas de apostas – esta última impossibilitada pela Lei Geral de Proteção de Dados.
- CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas e operações investigativas
Já a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas, aprovou a convocação de mais alguns jogadores para depor. Dando continuidade ao caso Paquetá, Luiz Henrique, jogador do Botafogo, foi convocado para prestar depoimento no Senado. Ele tornou-se foco da CPI após ter sido citado como beneficiário de transferência de R$ 40 mil feita por parentes de Lucas Paquetá.
Outro jogador investigado pela manipulação em jogos de futebol foi Bruno Henrique. O atacante do Flamengo é o principal alvo em uma operação da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público do Distrito Federal (MPDF) chamada Spot-Fixing. A investigação esteve concentrada em um cartão amarelo recebido por Bruno Henrique aos 50 minutos do segundo tempo em uma partida contra o Santos, válida pelo Campeonato Brasileiro de 2023, disputada no Mané Garrincha, em Brasília. O cartão amarelo veio após uma falta em cima de Soteldo, atleta do Santos. As autoridades suspeitam que o jogador rubro-negro forçou a falta para receber o cartão, beneficiando seus apostadores.
O ge (Globo.com) teve acesso ao relatório da International Betting Integrity Association (IBIA)¹ e os resultados indicaram um volume atípico de apostas no cartão amarelo de Bruno Henrique no jogo mencionado. As apostas foram realizadas em três bets diferentes: Betano, GaleraBet e KTO. Os valores de retorno totalizaram R$13.850 aos apostadores. As plataformas de apostas notaram um padrão incomum: muitas apostas direcionadas a Bruno Henrique, inclusive, contando com novas contas registradas na véspera da partida e com valores máximos – com origem em Belo Horizonte. Na Betano, 98% do volume de apostas no mercado de cartões estava direcionado ao atacante rubro-negro. Na GaleraBet, o índice apontado foi de 95%; a KTO detectou um percentual mais alto também, todavia não especificou o número. O relatório da IBIA informou, ainda, que as “odds” – por quanto o valor apostado será multiplicado – para o jogador receber o cartão eram de 3,10, ou seja, a cada R$ 1 apostado, o apostador teria um retorno financeiro de R$ 3,10 caso o resultado acontecesse.
Contudo, apesar de provas contundentes, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que também investigou o caso, decidiu por arquivá-lo por considerar os valores das apostas “ínfimos” em relação ao salário do jogador e a jogada – bater a falta – um lance normal. Além disso, o STJD alegou que a prática de “forçar” cartões é corriqueira no Campeonato Brasileiro, bem como não investigou se havia alguma relação pessoal entre o jogador acusado e os apostadores. Bruno Henrique continua a exercer suas atividades profissionais normalmente, treinando e viajando com o clube – que manifestou apoio ao atleta, afirmando que ele “desfruta da presunção de inocência”.
Ainda sobre a manipulação dentro de campo, outra operação mencionada na mídia foi a Operação VAR, conduzida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, que tinha como objetivo investigar um grupo que manipulava resultados de jogos da Série B do Campeonato Carioca, incluindo partidas de categorias profissional e sub-20. A operação investiga os clubes Nova Cidade, Belford Roxo, São José, o Brasileiro e o Duquecaxiense. Um dos alvos é William Rogato, conhecido como o “Rei do Rebaixamento” – mencionado no relatório anterior –, que já admitiu ter manipulado resultados de jogos para obter lucro. Rogatto afirmou que obteve um faturamento de R$300 milhões com o rebaixamento de 42 equipes. É válido mencionar que alguns árbitros também estavam envolvidos no esquema de manipulação, recebendo grandes quantias de dinheiro para influenciar os resultados dos jogos – o próprio William Rogatto admitiu que pagava cerca de R$50 mil aos árbitros para manipular resultados, mais de 10 vezes o que um árbitro recebe por partida. Essa operação expôs um problema de corrupção que não envolve só jogadores, mas, como mencionado, árbitros, dirigentes e empresários no futebol brasileiro.
Outro acontecimento que chamou atenção da mídia foi a Operação Integration, uma investigação conduzida pela Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) visando apurar mais um suposto esquema de lavagem de dinheiro por meio de jogos ilegais e casas de apostas esportivas. Dessa vez, o foco principal era a movimentação financeira atípica de empresas de apostas esportivas, bem como a atuação de influenciadores digitais e outras personalidades que promovem esses serviços. Ademais, a operação investigou a possível ligação entre casas de apostas e organizações criminosas, e como esse dinheiro ilícito seria “lavado” através de transações complexas. A influenciadora Deolane Bezerra, já mencionada no relatório anterior, ficou detida temporariamente, e o cantor sertanejo Gusttavo Lima foi indiciado pela Polícia Civil de Pernambuco. O envolvimento de Lima teve ligação devido a uma negociação de venda de uma aeronave com a empresa Esportes da Sorte e, posteriormente, vendido a mesma aeronave para o dono da Vai de Bet (empresa a qual o próprio cantor era acionista). A defesa do cantor argumentou que o cantor não cometeu nenhum crime, e que o próprio inquérito do Ministério Público de Pernambuco confirmaria a ausência de qualquer irregularidade. Por fim, o MP entendeu que não havia indícios contundentes para continuar com a investigação ao sertanejo. A operação segue em andamento, com a investigação tendo como foco a casa de apostas Esportes da Sorte e a análise das quebras de sigilos bancários.
Outra bet sob investigação da Polícia Civil é a EstrelaBet. O caso envolve o Ceará Sporting Club e uma possível irregularidade no uso de um contrato com a casa de apostas mencionada, que patrocinou o clube durante parte da Série B. O clube é suspeito de ter emitido mais de R$ 45 milhões em 85 notas fiscais frias² utilizando o contrato com a EstrelaBet. O Ceará nega que as transações realizadas tenham sido ilegais. A EstrelaBet é uma casa de apostas esportivas que patrocina diversos clubes de futebol no Brasil, como Internacional, além da seleção brasileira de futsal.
Por fim, a Operação FakeTech, uma investigação da Polícia Civil da Baixada Santista, em São Paulo, tem como objetivo combater crimes relacionados a plataformas de jogos on-line, incluindo o famoso “jogos do tigrinho”, cassinos e casas de apostas esportivas (bets). Os crimes investigados são estelionato eletrônico, jogo de azar e lavagem de dinheiro. A operação tem como alvos principais os influenciadores digitais que promovem esses jogos, em especial Ruyter Poubel e Jonathan Martins Pacheco. Poubel é acusado de vender cursos ensinando a como jogar em plataformas digitais, lucrando com as perdas de seus seguidores através de comissões pagas pelas próprias casas de apostas (o famoso “cachê da desgraça”). Pacheco também é investigado por suspeita de participação nesse mesmo esquema criminoso. Até o fim de dezembro, Ruyter Poubel estava sob custódia, e Jonathan Martins Pacheco não foi localizado pela polícia.
- Bets, as publicidades e os influenciadores
As empresas de apostas on-line realizam um investimento massivo em publicidade e patrocínio no futebol. Para 2025, as previsões chegam a R$ 2 bilhões, incluindo placas de estádio, patrocínio de clubes e transmissões de TV. As bets patrocinam atualmente 15 dos 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro.
A principal estratégia de marketing das bets é explorar a ideia de ganhos fáceis e rápidos, atraindo especialmente pessoas em situação de vulnerabilidade. Como visto com a CPI das bets, os principais divulgadores dessas casas de apostas são os influenciadores digitais – como Deolane Bezerra, Gusttavo Lima (alvos da Operação Integration) e Jojo Toddynho, nomes que figuraram na mídia em outubro. No mês de novembro, além dos mencionados, outro influenciador que se envolveu em uma polêmica com casas de apostas foi o ex-BBB Davi Brito. O campeão do reality show fora advertido pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) por divulgar nas redes sociais um anúncio de apostas com algumas irregularidades, como promessas de ganho certeiro e fácil, além da ausência de avisos obrigatórios, como a restrição etária.
- Pesquisas para compreender o impacto das bets no cotidiano brasileiro
Outro assunto amplamente divulgado pela mídia foram dados de estudos sobre o impacto das bets. Uma pesquisa do Datafolha revelou que 5% dos jogadores já venderam algo para seguirem com as apostas, enquanto 6% se sentem dependentes e sob risco de superendividamento. A Serasa Experian mostrou que 41% dos apostadores consideram a segurança contra fraudes a prioridade ao escolher uma casa de apostas. Outro estudo, da Febraban, mostrou que as apostas on-line já movimentam recursos expressivos na economia do país, correspondendo a até 3,5% do consumo das famílias. Ainda, 56% afirmaram que o dinheiro gasto com as apostas faz falta no final do mês – em especial para as famílias de baixa renda.
Todos os dados levantados expressam uma preocupante tendência de aumento de gastos em apostas, além de um impacto significativo no orçamento familiar do brasileiro, principalmente nas classes mais populares.
Metodologia
Foram escolhidos para análise três portais (folha.uol.com.br, globo.com e metropoles.com), listados entre os mais acessados na categoria “New & Media” pelo SimilarWeb. A análise foi desenvolvida com a ajuda do software Google NotebookLM. Foram coletadas, no total, 195 matérias, sendo elas: 77 da Folha de SP; 85 do Globo.com e 33 do Metrópoles.
Notas
¹É o principal órgão global sobre integridade para a indústria de apostas licenciadas.
²São documentos falsos que registram vendas ou serviços que não aconteceram.
Redação do relatório
Letícia Ribeiro (bolsista de Iniciação Científica)
Fausto Amaro (coordenador do Projeto)