Arlei Damo (2006) entende que o futebol de espetáculo se divide em quatro categorias de agentes: os profissionais, os torcedores, os dirigentes e os mediadores especializados. Os profissionais seriam os jogadores, treinadores e preparadores envolvidos com os jogos. Os torcedores se constituem no público com variados graus de interesse e envolvimento durante as partidas. Os dirigentes poderiam ser profissionais ou amadores filiados aos clubes ou às federações. Os mediadores especializados, por sua vez, são os profissionais que trabalham na espetacularização do futebol e produzem narrativas sobre os eventos futebolísticos. Esses mediadores são responsáveis por grande parte dos espaços jornalísticos na televisão, rádios, internet e jornais impressos. Eles podem ser profissionais da comunicação ou ex-atletas e ex-dirigentes que teriam a função de ‘explicar’ os eventos para o público que, de alguma maneira, não seria ‘apto’ a lê-los sozinho, “a imprensa (falada, escrita, televisada) produz, de fato, as leituras autorizadas dos eventos que ocorrem no futebol, muitas vezes, consagrando determinadas versões” (GUEDES, 2011, p. 6). Esses mediadores, apesar de suas diferentes origens, são chamados, costumeiramente, de cronistas esportivos e são os principais atores do que se pode nomear de jornalismo esportivo ou de imprensa esportiva. “A crônica jornalística é, em essência, uma informação interpretativa e valorativa de feitos noticiosos atuais ou atualizados, em que se narra algo ao mesmo tempo que se julga o que é narrado” (MARQUES, 2014, p. 201).
Neste texto, apresentarei algumas considerações a partir de uma disputa entre o treinador e ídolo gremista Renato Portaluppi (ou Gaúcho para o restante do Brasil) e alguns jornalistas a quem o treinador classificou como recalcados.

No início de 2020, o Grêmio repatriou Diego Souza, 13 anos após o, então, meia, hoje centroavante, se destacar na campanha do vice-campeonato da Libertadores. Além dele, Thiago Neves apontado como um dos principais responsáveis pelo inédito rebaixamento do Cruzeiro para a série B do Campeonato Brasileiro, também chegou ao tricolor gaúcho beirando os 35 anos. Mais do que a idade, o comportamento de Thiago Neves que perdeu uma penalidade no mesmo dia em que cobrou salários atrasados de um dirigente do Cruzeiro (para os que não lembram, esse dirigente teve um helicóptero suspeito aterrizando em sua propriedade há alguns anos) e foi visto em um festival no estádio Mineirão em seu dia de folga acabou ocupando protagonismo no noticiário esportivo local.
Em um programa televisivo regional, um jornalista comentou que com a chegada desses reforços, as casas noturnas da capital do Rio Grande do Sul precisariam de reforços. Outro jornalista que participava do “debate” “informou” que um amigo mineiro estava pensando em transferir seu empreendimento de entretenimento de Belo Horizonte para Porto Alegre.

No dia 29 de janeiro, em entrevista coletiva, Renato reclamou da postura de integrantes da imprensa esportiva, 1 ou 2% que seriam recalcados ao não fazerem críticas do trabalho dos profissionais, mas de suas vidas pessoais. Nas palavras do treinador: “Não tenho culpa se os caras têm uma profissão maravilhosa, se o futebol dá tudo pra eles, e esse cara de repente não venceu como jogador ou não venceu na profissão. Mas não fica atirando em quem venceu[1]”. O ídolo tricolor ainda sugeriu que os torcedores gremistas não acompanhassem o programa.
No dia seguinte, no mesmo programa, ao repercutirem a manifestação do treinador, um dos jornalistas o chamou de covarde ao não citar o nome dos prováveis recalcados. No mesmo dia, após partida pelo Campeonato Gaúcho, esse mesmo jornalista questionou o treinador sobre quem seriam os “recalcados”. Sem titubear, Renato afirmou: “um é você”. O treinador argumentou que existia uma série de desrespeitosas manifestações contra os profissionais, especialmente por não respeitarem as famílias de jogadores e do próprio treinador. Renato ainda afirmou que covardia era falar da vida privada dos jogadores na televisão sem que os mesmos estivessem ali para se defender. Ele ainda finalizou que coragem era a discussão que ele fazia com o repórter naquele momento “olho-no-olho”.
Ainda na repercussão, o diretor do programa entendia que discussões como essas seriam normais. O jornalista, nomeado por Renato como um dos recalcados, fez questão de reforçar que o próprio treinador disse que ele não tinha sido covarde por ter feito seu questionamento ao treinador. Ele ainda informou que o treinador não citou o episódio de desrespeito (aquele que citei algumas linhas acima) porque ele não existiu.
Como lembra Miquel Rodrigo Alsina “o discurso da mídia não é somente informativo, não pretende só transmitir o saber, mas também pretende fazer sentir” (2009, p. 49). Eugênio Bucci (2001) acredita que quando o jornalismo passa a emocionar mais do que informar, cria-se um problema ético, uma vez que a função do jornalismo seria justamente o de promover o debate de ideias no espaço público. O jornalismo esportivo pretende fazer sentir. Eventualmente, essa relação pode aparecer antes mesmo da transmissão da informação, de um determinado saber ou do “debate de ideias”, “não existe, no jornalismo factual, informação sobre os esportes, existe propaganda sobre o esporte, publicidade de marcas e logos, propaganda ideológica sobre suas relações de poder. Sensacionalismo e merchandising” (MESSA, 2005, p. 3). Essa característica, inclusive, poderia ser uma das explicações para a série de restrições empregadas aos jornalistas esportivos por jornalistas de outras áreas. Bueno (2005) argumenta que, apesar do espaço privilegiado na mídia, o jornalismo esportivo está afastado de uma experiência madura do “fazer jornalístico” e da excelência profissional.
Mesmo que as manifestações dos investigadores possam ser um tanto genéricas e, provavelmente, injustas com a totalidade dos profissionais e do fazer jornalismo esportivo, inclusive atravessado por certo preconceito a cobertura de temas da cultura popular, me parece que a discussão entre jornalistas e treinadores ou a acusação de que um jogador A ou B frequenta casas noturnas efetivamente pode se enquadrar em um espaço pouco nobre na construção noticiosa sobre um fenômeno esportivo ou não. Quem circula com maior ou menor intensidade no meio do futebol profissional sabe que os atletas participam de atividades noturna constantemente, curiosamente (ou nada curiosamente assim) esse fenômeno somente aparece quando as possibilidades técnicas de um jogador são colocadas em questão ou quando a equipe apresenta uma série de atuações ruins.
Talvez sejam essas práticas que autorizariam a “normalidade” de uma discussão entre um profissional do futebol e os mediadores especializados. Teriam os profissionais do futebol capacidade técnica para definir o que é um trabalho jornalístico adequado ou não? Discutir com o treinador de uma equipe importante do circuito local poderia ajudar a aumentar a audiência em um jornalismo que descreve um de seus contratados como um dos jornalistas que mais repercute. Seria esse jornalismo de “polêmicas”, “embates” e “repercussão” informativo?
Por fim, também me chamou a atenção a necessidade do jornalista chamado de recalcado por Renato de reforçar o entendimento de que não foi covarde. Apesar das diferenças apontadas por Arlei Damo que abre esse texto, me parece que o dispositivo pedagógico dos estádios de futebol e seu currículo de masculinidade (BANDEIRA, 2019) atravessam a todos os atores, mesmo que de modos distintos. A mesma covardia que ofendeu Renato poderia ofender os jornalistas. O treinador precisa armar a equipe, vencer partidas e ser corajoso. O jornalista não pode ser recalcado, ter boas fontes, informar, ganhar cliques e likes e ser corajoso. Ao menos parece fundamental não ser covarde.
Notas de Rodapé
[1] Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/esportes/gr%C3%AAmio/renato-portaluppi-critica-coment%C3%A1rios-recalcados-da-imprensa-1.396365. Acesso em 09/02/2020, às 9h48.
Referências
ALSINA, Miquel Rodrigo. A construção da notícia. Petrópolis/RJ: Vozes, 2009.
BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Curitiba: Appris editora, 2019.
BUCCI, Eugênio. O vício e a virtude. In: BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 129-87.
BUENO, Wilson da Costa. Chutando pra fora: os equívocos do jornalismo esportivo brasileiro. In: MARQUES, José Carlos; CARVALHO, Sérgio; CAMARGO, Vera Regina T. (Orgs.). Comunicação e esporte-tendências. 1 ed. Santa Maria: Editora Pallotti, 2005, v. 1, p. 13-27.
DAMO, ArleiSander. O ethos capitalista e o espírito das copas. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, SimoniLahud. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p.39-72.
GUEDES, Simoni Lahud. Discursos autorizados e discursos rebeldes no futebol brasileiro. In: Esporte e Sociedade. Ano 6, n. 16, nov. 2010/fev. 2011, p. 1-11.
MARQUES, José Carlos. A crônica de esportes no Brasil: algumas reflexões. In: CAMPOS, Flavio de; ALFONSI, Daniela. (Orgs.). Futebol objeto das ciências humanas. São Paulo: Leya, 2014, p. 185-205.
MESSA, Fábio de Carvalho. Jornalismo Esportivo não é só entretenimento. In: 8Forum Nacional de Professores de Jornalismo, 2005, Maceió/AL. 8 Forum de Professores de Jornalismo: Produção Laboratorial Impressa, 2005, p. 1-8.