No dia 25 de fevereiro de 2021, acabou o campeonato brasileiro de 2020, com o título do Flamengo. Essa data não é marcante somente pelo bicampeonato do time rubro-negro; mas pelo fato de o Brasil ter atingido seu recorde diário de mortes até aquele momento e também por ser o dia em que o país chegou ao número de 250 mil mortos por COVID-19. A temporada de 2020 foi repleta de campeonatos controversos e ficou marcada pelo retorno apressado do futebol (no início de agosto de 2020). Mais de 300 atletas contaminados na série A do campeonato brasileiro, partidas adiadas… como foi realizada a segurança no futebol no ano de 2020? Como pensar a segurança em eventos esportivos em meio a uma pandemia?
Quando se pensa sobre segurança em eventos esportivos, especificamente no futebol, o senso comum já a relaciona ao controle de torcidas (principalmente as torcidas organizadas); mas, em um momento pandêmico, a torcida não está presente. Se um dos principais (se não o principal) atores do futebol não se faz presente, como pensar a segurança desses jogos?
A ideia de segurança nos eventos esportivos é convencionalmente ligada ao controle dos modos de torcer. Esse controle, comumente exercido por efetivos policiais, permanece evidente, mesmo no contexto da pandemia, e o consequente afastamento de torcedores nos estádios. O caso da tentativa da Polícia Militar de São Paulo, que cumpriu a recomendação do Ministério Público estadual, a fim retirar um mosaico realizado pela torcida do Corinthians para o clássico com o Palmeiras, sob o argumento de provocação à torcida adversária, é um exemplo dessa atuação. O mosaico fazia menção aos dois anos em que o clube alvinegro se sagrou campeão mundial (2000 e 2012) seguido da frase “nunca serão”. Vale ressaltar que ambas as torcidas não estavam presentes no estádio, por questões sanitárias. Ainda assim houve uma tentativa de controle e limitação da liberdade de expressão da torcida, em uma frase em que não havia uma ofensa ou algum tipo de violência para com os integrantes da torcida adversária. Houve a tentativa de controle das expressões torcedoras mesmo na ausência de torcida (presencialmente). Tais ações vislumbram o silenciamento das torcidas partindo da falsa premissa de que as provocações são a razão para ações de violência nos estádios.
No caso do Rio de Janeiro, a segurança nas praças desportivas ocorreu (quase) normalmente. Apesar da ausência de público no interior dos estádios, o Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios (BEPE, antigo GEPE), vinculado à Polícia Militar do Rio de Janeiro, continuou realizando suas atividades, atuando nos jogos do campeonato brasileiro, copa do Brasil, Sul-americana, Libertadores… inclusive a final do torneio mais importante do continente, na temporada de 2020, ocorreu no estádio do Maracanã. Esse evento contou com a presença da torcida, algo que destoou dos jogos profissionais do Brasil ao longo deste ano.
Apesar do público restrito, aproximadamente 2.500 convidados, houve uma recomendação da CONMEBOL para que os torcedores ficassem concentrados somente em um setor do Maracanã (sem a separação das torcidas), o que gerou aglomeração; além do fato de que muitos torcedores utilizaram a máscara de modo inadequado. Durante a transmissão deste jogo, foi possível observar torcedores em comemoração tentando o contato com os jogadores e os stewards (operadores da segurança privada) tendo que conter a torcida pela preservação da integridade do campo e também dos jogadores, ao passo que se expunham à contaminação por COVID-19.
O fato é que no contexto em que um vírus é transmitido mais facilmente pelo contato entre pessoas, a divisão de torcida e a acomodação desses torcedores em mais um ou dois setores poderia impedir a aglomeração que foi gerada.
Outro caso em que houve aglomeração foi antes do jogo da 37ª rodada do campeonato brasileiro entre Flamengo x Internacional quando os torcedores foram acompanhar e motivar a delegação do clube carioca antes da partida. O BEPE atuou na dispersão destes torcedores. As motivações, diferenças e consequências destes dois casos de aglomeração precisam ser destrinchadas em outro momento, mas em ambas as situações houve aglomeração dos torcedores e um risco para eles mesmos e para os que promovem o policiamento e a segurança nos eventos esportivos.
No dia 09 de março, teve início a primeira rodada da Copa Brasil de 2021, competição na qual os clubes de todas as regiões nacionais se deslocam para realização de jogos. No dia 17 do mesmo mês, a FIOCRUZ apresentou uma série de gráficos com as taxas de leitos de UTI ocupadas por adultos com COVID-19 no SUS – somente os estados de Roraima e Rio de Janeiro estão na categoria de alerta médio, todos os demais estados, incluindo o Distrito Federal, figuram no alerta crítico, isto é, não há estados em alerta baixo.
Os protocolos divulgados pela CBF datam de junho de 2020 e não foram revisados ou atualizados desde então. Segundo esse documento, os atletas não necessitam realizar testes antes dos jogos; nessa ocasião, para os atletas só são necessários a aferição da temperatura, a utilização de máscaras até o aquecimento para o jogo e o “inquérito epidemiológico” quatro horas antes do início da partida, para saber se o olfato está afetado ou não. A equipe técnica também participa do aferimento de temperatura corporal, obrigatoriedade do uso de máscaras e a necessidade de responder ao mesmo “inquérito epidemiológico”.
Os exames laboratoriais são realizados somente em pacientes sintomáticos para permitir o retorno dos treinamentos em grupo, de acordo com as recomendações da CBF. Em quadro assintomático ou em membros da equipe técnica e outros funcionários do clube, segundo essa mesma recomendação, os exames laboratoriais e de imagem ficam “a critério de cada Departamento Médico” (CBF, 2020). É difícil imaginar que clubes, principalmente os de menor investimento, testam de modo recorrente seus atletas e ainda mais os funcionários, como massagistas e roupeiros, que recebem menos e, por isso, são os mais afetados em caso de um surto de COVID-19 nos clubes em que trabalham.
No dia 15 de março de 2021 foi instituída a nova fase de restrições do estado de São Paulo, a fim de reduzir o número de pessoas circulando e aumentar as medidas de isolamento social foram instituídas obrigatoriedade de home office em alguns setores, escalonamento da saída do trabalho almejando reduzir o número de pessoas em transporte público, fechamento de bares e restaurantes com o funcionamento somente para delivery e drive-thru, cancelamento das aulas por 15 dias e também a suspensão de atividades esportivas coletivas profissionais e amadoras do dia 15 ao dia 30 de março.
A partir dessa restrição do governo de São Paulo, a Federação Paulista de Futebol (FPF) divulgou uma nota em conjunto com o sindicato dos atletas e da arbitragem que aponta a possibilidade de jogos do Paulistão em outros estados e também “2-) A partir da falta de argumentos científicos e médicos que sustentem a paralisação das referidas rodadas neste momento, os clubes delegaram à FPF também a possibilidade de judicialização do caso para garantir a continuidade da competição no Estado de São Paulo neste período de Fase Emergencial.” (Nota FPF, 2021 [grifo nosso]).
A primeira medida sugerida em nota está sendo reavaliada após a negativa de Minas Gerais em receber o jogo do campeonato paulista, dada às condições do estado mineiro, o qual aumentou as restrições e suspenderam por 15 dias atividades esportivas, como futebol e vôlei. Quanto à segunda medida houve uma reunião no dia 18 de março da FPF com os clubes, na qual desistiram de prosseguir com a judicialização e não haverá rodada durante esse final de semana. É preciso refletir sobre algumas questões acerca desta temática.
O prosseguimento dos jogos de outros estaduais e da Copa do Brasil expõem os funcionários dos clubes, principalmente entre os clubes de menor investimento. Para analisar a conjuntura é necessário refletir para além da esfera dos atletas, pois com protocolos de segurança frágeis, os funcionários do clube, de modo geral tornam-se suscetíveis ao contágio e o risco da doença, no entanto, diferentemente dos atletas, estes funcionários podem ser mais velhos e com comorbidades.
Se por um lado há esta preocupação, a fala do goleiro Marcão, do clube Sergipe, ao final da partida contra o Cuiabá pela primeira fase da Copa do Brasil aponta para o desamparo financeiro sofrido pelos clubes de menor investimento, outro ponto desta realidade que deve ser discutido. Durante a entrevista o goleiro informou que defendia a continuidade do campeonato, pois ano passado receberam com atraso os pequenos salários, em comparação aos clubes de maior investimento. O time sergipano compareceu a essa partida com apenas seis atletas no banco de reservas (dentre os seis, três eram goleiros), pois nove atletas e o técnico testaram positivo para COVID. É preciso refletir qual o papel da CBF e das Federações de futebol frente a esta situação. Este é um fenômeno percebido para além da esfera esportiva, muitos trabalhadores se expõem ao vírus para continuar em um trabalho e garantir a segurança financeira para ao menos terem o quê comer. Devemos refletir sobre o papel das federações, da confederação e do Estado para a garantia da segurança destes cidadãos.
Quais são os termos da segurança nos estádios em tempos pandêmicos? Não é possível restringi-los a medidas de prevenção e controle quanto ao conflito e à violência, já que não há presença física de torcida. A maior preocupação deve, então, estar na segurança relativa à saúde de jogadores e demais profissionais presentes ao estádio. A segurança sanitária tornou-se uma preocupação mais patente e uma questão de saúde pública nesse contexto. Será que as organizações de todos esses campeonatos estão atentas a este modelo de segurança do modo devido? Será que os clubes estão prezando pela segurança dos funcionários que podem sofrer os danos dessa doença de modo mais significativo? Qual é o papel da entidade máxima do futebol brasileiro perante esse cenário? Será que é viável a continuação de um campeonato que conta com a presença de 80 clubes e prevê o deslocamento das delegações em um momento em que o número de leitos disponíveis no país estão cada vez menores? É possível continuar um campeonato onde o clube não possui atletas suficientes por conta do surto de COVID? Quais as garantias e seguridades ofertadas a esses funcionários que trabalham com o futebol (sejam atletas ou não)? Quais os limites esperados para a continuidade ou a interrupção das atividades esportivas brasileiras? Se houver a interrupção, quais serão as seguridades ofertadas para os clubes de menor investimento? As respostas para essas questões ainda estão em aberto, mas se faz necessária à reflexão sobre a realização dos campeonatos em face da conjuntura nacional, um contexto de agravamento da crise da saúde pública brasileira e à disseminação cada vez maior e mais descontrolada do vírus.