A união faz a arte

Os times entram em campo. A arquibancada (será que ainda podemos usar esse termo em tempos de arenas?) se transmutam. Onde antes se viam torcedores, surge uma enorme imagem em forma de mosaico. Um espetáculo que tem se tornado cada vez mais frequente em estádios pelo mundo afora. Nesse texto, trago uma entrevista que nos ajuda a entender algumas questões relacionadas a esse já não tão recente espetáculo do futebol mundial.

Estádio sempre foi sinônimo de festa, mesmo naqueles mais acanhados, mesmo quando a partida não é decisiva ou não tem o atrativo da disputa de grande porte. A celebração sempre esteve nas faixas, bandeiras, fogos, charangas e cantos. O colorido da multidão, o ecoar das vozes, as manifestações coletivas provocam uma sensação de prazer, mesmo naqueles que estão mais acostumados com o futebol. Certa vez, entrevistando o craque Zico, sobre o Maracanã, ele me disse que uma das coisas mais lindas do mundo era o visual que se descortinava quando a porta do elevador social do velho Maraca se abria no alto das tribunas e a massa de torcedores podia ser vista por inteiro.

Mosaicos não são necessariamente uma novidade. Muito menos se nos referirmos à forma de arte pictórica usada na antiguidade. O mais ancestral de todos já encontrados até hoje teria sido criado em 3.500 antes de Cristo, no povoado de Ur, na região da Mesopotâmia, atual Iraque. Já a ligação dessa arte com o esporte é bem mais recente. Quem tem mais idade, como este autor, vai se lembrar, certamente, da novidade apresentada nos Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980. Um painel humano (como se denominavam os primeiros mosaicos) trouxe a inesquecível e emblemática imagem da mascote das Olimpíadas, o ursinho Misha, inclusive derramando uma lágrima de saudade na cerimônia de encerramento. 

          A inovação do espetáculo que deu “vida” ao urso Misha. (COI)

Os avanços tecnológicos fizeram com que iniciativas como essas se tornassem mais comuns. A utilização de ferramentas digitais acessíveis deu maior popularidade aos mosaicos, principalmente nos países onde o futebol tem maior público. Ver todos os quase 100 mil espectadores do Camp Nou, montarem um mosaico lembrando que o Barcelona é “més que um club” (“mais que um clube”, em catalão) é de arrepiar qualquer um. Mas sempre há formas de inovar e a torcida do Borussia Dortmund, da Alemanha, passou a se destacar com os mosaicos 3D, nos quais, além das peças de papel levantadas pelos integrantes do mosaico, também há uma espécie de cangalha que é içada, fazendo surgir mais um elemento de cena complementar. No Brasil, a tendência vem sendo seguida, praticamente, de norte a sul do país.

Para tentar entendermos a mecânica e toda estrutura dessa festa visual, trago uma entrevista com a designer (e também matemática de formação) Lara di Melo, de 28 anos. Ela faz parte do Movimento Ninguém Ama Como a Gente, formado por torcedores do Botafogo de Futebol e Regatas, do Rio de Janeiro. É interessante esclarecer que Lara ou nenhum outro integrante do grupo é remunerado para realizar esse trabalho. Todos são voluntários.

        Lara di Melo, a designer dos mosaicos alvinegros. (Instagram)

Além do núcleo fixo do Movimento (formado por cerca de 30 pessoas) é preciso que muito mais gente participe da tarefa, como conta Lara:

– Precisamos de mais voluntários no dia de montar o mosaico. Então a gente abre um formulário e publica nas redes sociais, nele as pessoas se inscrevem para ajudar. São necessárias, ao menos, 80 pessoas quando o mosaico ocupa as partes superior ou inferior do setor leste do estádio. Se forem 150, melhor ainda porque podemos ir pra casa mais cedo. Só que se vierem apenas 20 pessoas, mesmo assim a gente vai ter que dar um jeito de fazer.

O trabalho é árduo: dispor os quadrados de papel com suas cores correspondentes em cada assento da área do mosaico toma pelo menos cinco horas. “Pra gente parece rápido, porque em 2023, contra o Flamengo, a gente fez no estádio inteiro e ficou treze horas lá dentro”, lembra.

O trabalho de criação é coletivo e conta com sugestões não apenas de membros do grupo; algumas ideias chegam através das redes sociais. O perfil do Instagram do Movimento Ninguém Ama Como a Gente tem quase 53 mil seguidores. Um número bem significativo se comparado ao do Camisa 7, programa de sócios-torcedores do Botafogo, que tem 59 mil inscritos. Tema definido, é hora de Lara colocar mãos à obra:

– Eu pego a planta do estádio vista por cima e feita por um arquiteto. Tiro o fundo dela e boto no programa que eu uso para desenhar, que é o Photoshop. E aí, com a planta por cima, faço o desenho; passo uma folha de papel por cima da arquibancada para ver onde vai encaixar. A parte fundamental do desenho não pode ficar em cima das escadas, nem dos túneis, porque ali não vai ter placa. Depois disso eu exporto para o AutoCAD, que é um programa de arquitetura, e aí vou colorindo de acordo com a placa de mosaico relativa a cada assento. Um processo que pode levar até oito horas.

           O Cérbero, guardião do inferno. Criação de Lara. (Mundo Botafogo)

A busca por um impacto visual cada vez maior gera, em alguns casos, a profissionalização dos organizadores desse tipo de espetáculo. No Ceará, as festas na entrada em campo do Fortaleza Esporte Clube, hoje, são organizadas por um grupo chamado Operação Mosaico (tentei contato com eles para este artigo, mas não tive retorno em tempo hábil para sua publicação).  Os custos são altos (no estádio Nilton Santos, ficam em torno de 50 mil reais) e no caso do Botafogo, todo esse dinheiro vem de colaboradores, o clube só ajuda em relação à infraestrutura do estádio, como ressalta Lara:

– Nós temos uma sala dentro do estádio onde a gente pode guardar os materiais, o que ajuda muito, porque as torcidas quando vão entrar com material no estádio, têm que passar por uma revista. Além disso, teríamos que carregar tudo da sede até o estádio e depois recolher. O clube também auxilia em eventuais ações patrocinadas, como já foram feitas com o site de apostas Pari Match e com a fornecedora de material esportivo Reebok. Atualmente a gente está mudando a nossa estrutura de mosaico 3D porque descobrimos uma tecnologia muito melhor, que vai facilitar muito o que a gente já faz. É um sistema automático que carrega mais peso, faz com que a figura suba mais rápido e ainda é mais seguro. A boa relação com o clube permite que se possa instalar a estrutura lá dentro.

Questionada sobre o temor do mosaico não funcionar por falta de gente dentro do estádio na hora da entrada do time, Lara confessa que em alguns momentos ficou com um frio na barriga:

– A gente teve esse receio na partida contra o Universitario de Lima (abril de 2024). Era um jogo às sete da noite e faltando meia hora para o jogo começar, não estava nem 50% preenchido. Então, a gente foi para fora, pegou uns megafones e começou a gritar pedindo que o pessoal entrasse, senão a gente ia passar vergonha por causa do mosaico incompleto. Isso ajudou a motivar os torcedores e deu tudo certo. 

 

Imagem é tudo 

Os clubes se beneficiam midiaticamente com esses espetáculos. A plasticidade dos mosaicos é perfeita para a imagem, não apenas de câmeras de transmissão das emissoras de TV, mas, também, para as dezenas de milhares de câmeras de smartphones que registram aquele momento e permitem que seja viralizado nas mais diversas plataformas digitais. Um desses vídeos chamou muita atenção em 2023; um influenciador paulista registrou com enorme empolgação o mosaico que tomou todo o estádio Nilton Santos na partida contra o Flamengo pelo Campeonato Brasileiro. Esse vídeo que se espalhou por diversos canais botafoguenses na internet, pode ser visto nesse link (https://www.youtube.com/shorts/HoBDIaytVmY).

Outro fator extremamente positivo dos mosaicos é a identificação com o clube, um sentimento de orgulho e pertencimento, não só por aqueles que levantam as placas de papel, mas por todos os torcedores do clube. Lara se emociona quando fala desse sentimento gerado pelos mosaicos que ajuda a criar:

– A reação dos torcedores mexe com a gente. Ano passado fizemos uma ilustração com três gerações de torcedores e a menininha quase tocando na estrela. Era uma identificação com a família de cada um. Acho que esse foi o que mais emocionou os torcedores. A gente via, na internet, as pessoas comentando. Tem a ver com a história do Botafogo e do botafoguense. Não é só fazer festa por fazer. E aí, você vê como isso toca a nossa torcida. É realmente um sentimento inigualável.

 Mosaicos também podem emocionar. (X.com)

Recentemente o grupo foi convidado a montar um mosaico no Maracanã para a partida beneficente, em prol dos desabrigados da tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul. Um reconhecimento ao bom trabalho que vem sendo realizado no Estádio Olímpico Nilton Santos. A designer faz questão de deixar claro de que, apesar de ser a figura mais visível do Movimento, há muito mais gente envolvida:

– Meu trabalho, na verdade, é muito pequeno dentro da organização. Tem o fornecimento de alimentação para os voluntários; a comunicação com as pessoas, através das mídias sociais; o nosso financeiro, que faz toda a prestação de contas. É muita gente dedicada para fazer isso acontecer. Gente que abre mão da vida pessoal para poder fazer isso. E eu espero que nosso trabalho siga agradando a nossa torcida, que as pessoas continuem mandando ideias, porque a gente está aqui para representar o torcedor, né? E todo mundo que quiser participar um dia de uma montagem é muito bem-vindo. A gente sente que está fazendo parte da história do clube, sabe? Eu não posso entrar em campo, mas eu posso estar na arquibancada. O sentimento que faz todo mundo no Movimento trabalhar tanto assim, é ter a certeza de que a gente pode estar contribuindo positivamente para o nosso Botafogo.

 É hora do show da torcida. (X.com)

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