Desigualdade de gênero: infantilização na mídia esportiva desvaloriza atletas mulheres

Todo bom jornalista entende que vocabulário adequado é muito importante para a profissão. É por isso que tomamos muito cuidado com os verbos utilizados, com os adjetivos e sabemos que o texto ideal deve ter informações e palavras precisas. Mas o rigor jornalístico parece não ser tão importante assim para muitos profissionais quando o assunto envolve mulheres. Muitas vezes, manchetes e textos culpabilizam a mulher vítima de violência ou colocam em dúvida denúncias de assédio (PINTO, 2013; OLIVEIRA e RODRIGUES, 2022).

Conforme Squarisi e Salvador (2005), a clareza das ideias está intimamente relacionada à precisão das palavras que as traduzem, mas existe um vocabulário descuidado e, por vezes, preconceituoso destinado às mulheres na comunicação, e isso se estende ao jornalismo esportivo. 

Sabemos que, em geral, as atletas estão fora da mídia: entre os profissionais do esporte que aparecem em reportagens sobre o assunto, apenas 7% são mulheres. Esse número cai para 4% se considerarmos quem é a personagem principal das matérias (PASSOS, 2021). Quando conseguem um raro espaço em determinados veículos, as atletas são tratadas como “musas”, esposas ou namoradas de alguém, ou são citadas por causa de algum fato da vida pessoal. Mas o problema vai muito além: até mesmo quando o ou a jornalista acredita estar tratando o esporte com carinho, o vocabulário diz muito sobre o respeito que se tem com a categoria. 

Grieves (2016, apud CAFEO; BUENO; MARQUES, 2018) reforça em sua pesquisa que o discurso sobre mulheres no esporte se concentra desproporcionalmente na aparência e vida pessoal e há uma tendência de infantilização das atletas, muitas vezes apresentadas como “meninas”, enquanto homens atletas recebem adjetivos como “rápido”, “forte”, “grande”, “real”. A reflexão desse artigo vai caminhar, de forma específica, a partir desse aspecto do vocabulário sobre mulheres atletas. Quantas vezes você ouviu um ou uma jornalista dizer “meninos” ao se referir a esportistas homens, sem ser uma piada ou falando de jogadores muito jovens e das categorias de base? Vale reforçar que infantilizar, assim como ser paternalista e condescendente, o que também está por trás de colocar mulheres como “meninas”, faz parte da hostilidade misógina, conforme a pesquisadora Kate Manne (2017).

Mas, se existem tantos problemas mais urgentes para as mulheres no esporte, por que falar de vocabulário? Bom, porque quem trabalha com linguagem e comunicação precisa, no mínimo, se preocupar com a mensagem que está passando. Segundo Scharagrodsky (2019), a imprensa tem, historicamente, uma posição privilegiada na produção de discursos sociais e por muito tempo contribuiu com a construção de representações sobre corpo, sexualidade e feminilidade. 

Não por acaso, a pesquisadora Aira Bonfim (2023) traz em sua obra “Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios (1915-1941)” um levantamento que fez sobre o esporte em jornais publicados entre os anos 1915 e 1940. Quando falavam de futebol de uma forma geral, os jornais usavam termos como: esquadrão, soccer, equipes, peleja, quadro, entre outros similares. Quando havia o envolvimento de mulheres as palavras utilizadas eram: garotas, senhoritas, belo sexo, moças, sexo frágil, filhas de Eva etc. O quanto avançamos nesse aspecto em 84 anos, quase um século depois? 

Livro de Aira Bonfim, resgatando os registros antigos das mulheres jogando futebol no Brasil.

Thais Farage, pesquisadora de moda e gênero, conta no livro “Mulher, roupa, trabalho” (2021), que muitas clientes ficam aflitas tentando mascarar a idade que têm. As mais jovens querem ser vistas como mais velhas, para não serem lidas como inexperientes, não confiáveis ou incapazes de ocupar determinado cargo. Colocando isso no mundo do futebol, como dizer para as marcas, federações, dirigentes e torcedores(as) que as atletas merecem apoio e tratamento igualitário se são apenas “meninas”, talvez brincando de jogar futebol? 

Cotta e Farage (2021) citam, ainda, os casos das políticas estadunidenses Nancy Pelosi e Alexandria Ocasio-Cortez, que utilizam a linguagem da roupa para suavizar o impacto das duas idades. Muitas vezes elas são atacadas somente em razão da idade e não por seus posicionamentos ou trabalho no congresso. Apesar de ter bastante apoio popular e estar à frente de diversos projetos importantes, Ocasio-Cortez “continua sendo tratada como uma menina que não sabe o que faz”.

Em um contexto mais amplo, como aponta a socióloga Lisa Wade (2013), a sexualização de meninas e a infantilização de mulheres são dois lados da mesma moeda. “São duas maneiras de achar que devemos considerar a juventude, a inexperiência e a inocência características sexy nas mulheres, mas não nos homens”, diz. Ou seja, isso reforça a diferença de poder entre homens e mulheres, em que a vulnerabilidade e a dependência são traços desejados em um sexo, mas não no outro. 

A autora diz ainda que mulheres poderosas que exibem traços infantis podem ser mais aceitas nos ambientes – talvez por isso, para algumas, seja reconfortante esse tipo de tratamento – mas a partir do momento que não o fizerem vão ser vistas como ameaçadoras ou antipáticas. Trata-se de “infantilizar mulheres adultas como uma forma de lembrar às mulheres qual é sua posição social prescrita com relação aos homens” (WADE, 2013). 

E o perigo vai além: quando as mulheres não se encaixam nesse padrão de feminilidade, de inocência, em geral, são insultadas e têm sua sexualidade questionada no mundo do esporte. Portanto, para Fornari e et al. (2019), é necessário um enfrentamento às desigualdades de gênero na mídia esportiva, minimizando discursos que reforçam a sexualização de atletas para evitar, inclusive, agressões as que não se encaixam nesses padrões atribuídos ao feminino. Na mesma linha, Cafeo, Bueno e Marques (2018), acreditam que a cobertura esportiva deve trazer espaços de visibilidade para as atletas, criando uma nova consciência social em relação ao gênero no campo esportivo. 

Afinal, conforme Mariana Ibarra (2020), a linguagem é chave nas disputas em relações de poder, constrói sentidos e visibiliza ou invisibiliza mundos possíveis. Ao dizer, é possível criar e transformar. 


Referências: 

BONFIM, Aira. Futebol feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios (1915-1941). São Paulo: edição da autora, 2023.

CAFEO, Marta Regina Garcia; BUENO, Noemi Correa; MARQUES, José Carlos. Guerreiras e Meninas: as representações sociais das atletas Olímpicas no jornal O Globo na “Rio 2016”. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville – SC, 2018.

COTTA, Mayra. FARAGE, Thais. Mulher, roupa, trabalho: como se veste a desigualdade de gênero. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

FORNARI, Lucimara Fabiana et al. Perspectiva de gênero nas reportagens sobre mulheres atletas nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Texto & Contexto Enfermagem, v. 28, p. 1-14, 2019.

IBARRA, Mariana. “Cuéntame tus testosteronas”: un análisis sobre las regulaciones para jugadorxs transgénero e hiperandrógenas. Revista de estudios de Género, n. 52, p. 161-190, 2020. 

MANNE, Kate. Down girl: the logicof misogyny. USA: Oxford Univrsity Press, 2017. 

OLIVEIRA, Niara de. RODRIGUES, Vanessa. Histórias de morte matada contadas feito morte morrida: a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira. Curitiba: Drops Editora, 2022.

PASSOS, Úrsula. Futebol narrado e comentado por mulheres ganha espaço na TV aberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2021/02/futebol-narrado-e-comentado-por-mulheresganha-espaco-na-tv-aberta.shtml. Acesso em: 25 jan. 2022.

PINTO, Ana Estela de Sousa. Jornalismo diário: reflexões, recomendações, dicas e exercícios. São Paulo: Publifolha, 2014.

SCHARAGRODSKY, Pablo Ariel. ¿Cruzando fronteras? La prensa y el primer cruce a nado del Río de la Plata, Uruguay-Argentina, 1923. Revista de Historia, v. 5, n. 8, 2019.

SQUARISI, Dad; ARLETE, Salvador. A arte de escrever bem: um guia para jornalistas e profissionais do texto. São Paulo: Contexto, 2005.

WADE, Lisa. Behind the Cultural Imperative for Women to be Sexy And Cute. Jezebel, 8 de agosto de 2013. Disponível em: https://www.jezebel.com/behind-the-cultural-imperative-for-women-to-be-sexy-and-1069455704. Acesso em: 24 maio 2024. 

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