Fla x Flu das diretas: quando a democracia entrou na arquibancada

Pensar futebol e política nos anos 80, inevitavelmente, leva-nos ao debate da Democracia Corinthiana – mas embora o movimento do Parque São Jorge seja o maior movimento político esportivo do Brasil, outros clubes e torcidas se envolveram na dicotomia durante a transição política brasileira. E esse é o caso do “Fla x Flu das diretas”, em 1985.

Apesar da transição política brasileira ter sido anunciada ainda por Geisel, e consolidada em 1979, com a Lei da Anistia e a volta dos exilados políticos marcando seu início popularmente, os moldes em que a abertura política aconteceriam eram incertos. A previsão de eleições indiretas, ou seja, com voto de um colégio eleitoral ou congresso, e não por voto popular, foi contestada em 1984. O deputado federal Dante de Oliveira, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, sugeriu uma emenda constitucional que tornaria as eleições para presidente diretas – ou seja, com voto popular.

Foi o pontapé inicial das Diretas Já! no país. O comício a favor da ementa na Praça da Sé, em São Paulo, reuniu figuras como Sócrates, Casagrande e Wal…, além do narrador esportivo Osmar Santos, contribuindo para o clima de esperança no país. Mas mesmo com o apoio público da população, no dia 25 de abril de 1984, a emenda foi votada, com 268 votos a favor, 65 contra e 3 abstenções. Além disso, 112 parlamentares não compareceram à Câmara dos Deputados, e a ementa Dante de Oliveira foi recusada por não atingir os votos mínimos para aprovação.

Nesse cenário, dois candidatos surgiram liderando as campanhas para o primeiro presidente civil brasileiro desde 1964: Paulo Maluf, apoiado pela ditadura militar, e Tancredo Neves, candidato da oposição. As eleições estavam marcadas para 1985, mas as campanhas já começaram no ano anterior. E em setembro de 1984, a campanha presidencial brasileira entraria em campo no Maracanã. 

Mas antes, ainda em 1984, o Fluminense se consagrou campeão brasileiro pela primeira vez. Em final disputada contra o rival carioca Vasco da Gama. Era o primeiro título do time tricolor, que teve a melhor campanha na edição. Na véspera de uma final e Taça Guanabara, alguns jogadores do Fluminense, incluindo o atacante Washington, os laterais Branco e Aldo e o volante Jandir, acompanhados do preparador físico Nazareno Tavares. 

Nazareno, inclusive, havia sido indicado ao cargo pelo presidente João Figueiredo, e os dois se conheciam pelo fato de o preparador físico ter ajudado o militar na recuperação de um infarto. Em Brasília, os jogadores e comissão visitaram com a intenção de presentear Figueiredo, e aproveitaram para fazer uma parada também no gabinete de Paulo Maluf. Mesmo sem ter ido na viagem, o goleiro tricolor Paulo Vitor chegou a tirar uma fotografia ao lado do candidato da situação, e a imagem foi ao ar na TV Manchete, na véspera do clássico.

Do lado do Flamengo, é preciso destacar uma torcida organizada: a Fla-Diretas, fundada em 1984 por um grupo de estudantes do Rio de Janeiro ligados ao Partidão, como era conhecido o PCB antes da legalidade. Os próprios fundadores não recordam exatamente como aconteceu a decisão de fundar a torcida, mas apontam que a ideia provavelmente surgiu de uma brincadeira entre o nome do último presidente da ditadura militar, João Baptista Figueiredo, com o nome de um jovem zagueiro rubro negro, Cláudio Figueiredo Diz, mais conhecido apenas como Figueiredo. 

Torcida da “Fla Diretas”, apoiadores do candidato Tancredo Neves

A torcida inclusive recebeu aval do clube, incluindo do próprio Figueiredo e do então presidente George Helal, além do ex-presidente Márcio Braga, e de outras organizadas, como a Raça Rubro-Negra. A Fla-Diretas esteve presente nas manifestações a favor da emenda Dante de Oliveira, e após a derrota do movimento, mudou seus esforços para apoiar a então candidatura de Tancredo Neves. 

É claro que o encontro dos tricolores com Maluf não seria esquecido pelo cenário do clássico. A repercussão antes da partida foi tanta que os próprios candidatos foram perguntados e deram seus palpites sobre o placar do jogo, com Tancredo palpitando vitória do Flamengo por 3×1 e Maluf apostando que o Fluminense venceria por 2×1.

No dia 23 de setembro de 1984, Flamengo e Fluminense se enfrentaram em campo no Maracanã, enquanto as torcidas teciam um embate político na arquibancada. Contrariando os próprios jogadores, a torcida do Flu levou faixas escrito ““Maluf é corrupção, Tancredo é a solução”. Já a Fla-Diretas, do outro lado do estádio, estendia faixas com os dizeres: “O Fla não malufa” e “Muda Brasil, Tancredo já!”. Em campo, melhor para os rubro-negros, que venceram por 1×0 com gol da então jovem promessa Bebeto.

A revista Placar, que na época era comandada por Juca Kfouri, ressaltou o lado político do confronto com a manchete “A tancredada do Fla”, seguido do comentário “O Flu malufou e perdeu a decisão (1×0)” e revela que o técnico rubro negro, Zagallo, usou a disputa como parte do discurso para incentivar os atletas antes do jogo, dizendo “Vamos dar uma tancredada no tricolor”.

Sendo assim, o Flamengo foi campeão da Taça Guanabara naquela noite, e posteriormente seria o Fluminense a se sagrar campeão do Campeonato Carioca de 1984. Ainda que tudo tenha sido resolvido em campo para os times ainda naquele ano, as eleições presidenciais só seriam realizadas em 1985. Tancredo Neves foi eleito presidente do Brasil, mas o político faleceu antes de receber a faixa presidencial, e o seu vice, José Sarney, político ligado à ARENA, acabou se tornando o primeiro presidente civil brasileiro desde 1964. 

O final dos anos 80 ainda reservaria muitas questões políticas e esportivas. Na política, a formação de uma Assembleia Constituinte em 1987 e posteriormente a promulgação da Constituição de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”. Ainda em 1987, no futebol, a CBF anunciou que não organizaria o Campeonato Brasileiro por falta de recursos, o que fez com que parte dos clubes brasileiros se reunissem e montassem o próprio campeonato com o Clube dos Treze e a Copa União. As disputas consequentes são assunto no futebol até hoje – mas isso é outra história.

Ainda que em menor escala, o Fla x Flu das diretas mostra o quanto o futebol e suas torcidas estão constantemente refletindo a situação política do país. Embora muitos insistam em pensar o futebol como um lugar “apolítico”, pelo contrário, é impossível analisar o esporte deixando de lado os fatores sociopolíticos que se manifestam ao seu redor e impactam dentro e fora de campo. 


Referências

Fico, Carlos. “Violência, trauma e frustração no Brasil e na Argentina: o papel do historiador.” Topoi (Rio de Janeiro) 14 (2013): 239-261.

Sartori, Caio. Democracia rubro-negra: quando a torcida do Flamengo gritou Diretas Já. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 30, 2019.

Barenco, Bruna Ferraz. A queda dos heróis em Sarriá: a construção da memória da seleção brasileira de 1982. Orientador: Samantha Viz Quadrat. Niterói: UFF/ICHF/PPGH, 2005. Dissertação.

Ribeiro, Luiz Carlos. “Futebol e política”. In Giglio, Sérgio Settani; Proni, Marcelo Weishaupt. (Orgs.). O futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.

Silva, Francisco Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In Ferreira, Jorge; Delgado, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.) O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Revista Placar

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