
Pela segunda vez nos Jogos Olímpicos, o surfe não decepcionou. Trouxe momentos de incerteza, próprios da dependência da natureza e a sua alea (CALLOIS, 2017), e também as glórias das vitórias e o amargor das derrotas, inerentes ao jogo (HUIZINGA, 2019). As disputas foram realizadas a mais de 15.000 quilômetros de Paris, em um território ultramarino francês, mais precisamente no Tahiti, na onda de Teahupo’o.
A Polinésia Francesa entregou tudo o que foi prometido e muito mais. O engajamento das comunidades francesas além-mar, uma paisagem idílica digna de quadro (CAUQUELIN, 2007), a ligação da comunidade local com o mar e ondas tubulares e perigosas, perfeitas para a realização de um espetáculo de surfe com os melhores surfistas do mundo. Mas antes mesmo do início das disputas, um protesto dos moradores da ilha chamou a atenção. Foi alegado que o projeto de substituição da antiga torre de julgamento, que era feita de madeira, por uma nova de alumínio, traria um impacto ambiental para os recifes de coral. Após a pressão não só dos habitantes, mas também de ambientalistas e inclusive do prefeito da ilha, o Comitê Olímpico Internacional (COI) voltou atrás e diminuiu o projeto original[1].
O Brasil chegou como um dos favoritos. Tinha a maior equipe, com seis surfistas: Gabriel Medina, Filipe Toledo, João Chianca, Tati Weston-webb, Tainá Hinckel e Luana Silva. Talvez por isso, a TV Globo tenha batido recorde de audiência no dia das finais, alcançando o total de 47,5 milhões de pessoas[2]. O destaque ficou com a atuação de Gabriel Medina, que conseguiu uma nota 9,9 no round 3, após sair de um tubo profundo e voar para as câmeras clamando pela primeira colocação (foto acima, que viralizou na internet). E também pela garra de Tati Weston-webb que lutou até a final, mas acabou ficando em segundo lugar por apenas 18 décimos.
Medina, que ficou com o bronze, sofreu com a falta de ondas na semifinal. Foram exatos 17 minutos sem vir uma única onda durante a disputa. Esse fato trouxe à tona um problema já conhecido para os organizadores e fãs do esporte, mas que talvez o público em geral não esteja tão familiarizado: imprevisibilidade do mar. Alguns alegaram que não seria justo, pois o atleta não conseguiu mostrar todo o seu potencial. Porém, o fator sorte acaba sendo parte do jogo do surfe. O julgamento da performance do atleta é impactado pela escolha de ondas, pois elas podem determinar a velocidade e a potência das manobras[3]. Mas as condições do mar durante a bateria podem ser determinantes, pois assim como existem as séries (quando vem uma sequência de ondas), também existem os momentos de calmaria (quando não vem nenhuma onda).
Essa falta de controle e a suposta injustiça durante as disputas no mar nos remetem à possibilidade de realização do surfe olímpico em uma piscina de ondas, nas próximas edições dos Jogos. A despeito da ausência da ligação histórica do surfe com a natureza, esses locais assegurariam a previsibilidade necessária ao espetáculo: baterias com horário pré-estabelecido, que facilitam a transmissão, e uma quantidade de ondas idênticas surfadas por todos os atletas. E talvez assim, crie-se uma nova modalidade olímpica, diferente do surfe praticado no mar.
Referências
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Roger Caillois: tradução de Maria Ferreira ; revisão técnica da tradução de Tânia Ramos Fortuna. – Petrópolis, RJ : Editora Vozes, 2017. – (Coleção Clássicos do Jogo)
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. O jogo como elemento da cultura. / Johan Huizinga: tradução João Paulo Monteiro, revisão de tradução Newton Cunha. — 9. ed. rev. e atual. — São Paulo : Perspectiva, 2019.
—————————————————————————————————————————————–
[1] Disponível em: <https://olympicanalysis.org/paris-2024-live/paris-the-greenest-games-in-history-the-case-of-surfing-suggests-otherwise/> Acesso em: 15 de ago. 2024
[2] Disponível em: <https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2024/08/olimpiadas-com-medalhas-do-surfe-globo-bate-recorde-e-chega-a-48-milhoes-em-uma-noite.shtml> Acesso em: 15 de ago. 2024
[3] Disponível em: < https://olympics.com/en/news/surfing-explained-how-the-new-olympic-sport-is-judged> Acesso em: 15 de ago. 2024